Após o crédito inicial padrão da Marvel focado nos personagens do filme e uma cena de abertura com um flashback de Rocket, Guardiões da Galáxia Vol. 3 começa embalado por uma versão acústica de ‘Creep’, da banda Radiohead. A letra da música se encaixa perfeitamente com a história de todos os personagens deste grupo disfuncional, mas é no próprio Rocket em que ela ressoa com mais força e, consequentemente, dá tom ao filme.
“Creep” fala sobre se sentir estranho no mundo, sobre pertencimento, solidão e a dor que esses sentimentos causam, sobre a busca pelo controle, sobre ter uma alma pura e útil; dilemas que desde o Vol.1 estavam presentes e incutidos na história misteriosa do guaxinim e de muitos que o cercam. Mantis (Pom Klementieff) nunca havia conhecido nada e ninguém além de Ego, Drax (Dave Bautista) perdeu a sua mulher e filha pelas mãos de Ronan e Thanos, Nebula (Karen Gillan) foi torturada pelo seu próprio pai (Thanos, de novo) e com uma irmã “ausente” e Peter Quill (Chris Pratt) depois de ver a sua a mãe morrendo, sido sequestrado por alienígenas, matado o seu pai e perdido a sua única figura paterna, agora é assombrado pela morte de Gamora (Zoe Saldana), ou ao menos aquela que ele e nós, enquanto audiência, conhecemos. Recair na bebedeira foi o caminho mais fácil para Quill e vemos logo no início ele completamente fragilizado enquanto a sua família tenta ajudá-lo e fazer com que ele encontre um propósito.
No entanto, quando o passado sombrio de Rocket vem à tona na forma de Adam Warlock (Will Poulter), eles precisam sacudir a poeira e agir rapidamente para uma missão de vida ou morte que pode custar a vida de um membro importante do grupo e depois muitas outras caso falhem.
James Gunn retorna como diretor e roteirista (depois de ter sido demitido) para dar fim a essa trilogia que iniciou em 2014, quando o grupo ainda era desconhecido até mesmo para os fãs mais assíduos da Marvel. A missão dele aqui é quase tão difícil quanto a dos Guardiões da Galáxia, pois ele deveria, em 150 minutos, encerrar arcos desses personagens que aprendemos a amar da forma mais satisfatória, criativa e emocionante possível. E não é spoiler falar que ele conseguiu.
Para isso, o roteiro trabalha com duas linhas temporais bem distintas: a da missão para salvar um membro da equipe e o passado traumático de Rocket. Nos flashbacks, conhecemos um pouco mais das motivações do principal antagonista do filme: o Alto Evolucionário (Chukwudi Iwuhi), que se mostra completamente odiável até nos momentos em que ele assume o posto de “o mais racional e melhor intencionado possível”. Não existe carisma como o Kang de Jonathan Majors ou o Killmonger (Michael B. Jordan), o único sentimento é de repulsa – desconheço um outro vilão da Marvel que tenha conseguido passar essas sensações (nem mesmo o Thanos).
É verdade que suas ações apelativas e inescrupulosas ajudam, mas não podemos desvalorizar o trabalho do ator. É interessante vê-lo em cena e em como ele se comporta nela, trazendo uma atuação muito mais teatral e maniqueísta para compor o seu personagem, o que funciona muito bem por conferir um ar de arrogância e falso eruditismo, que se eleva em suas interações com Rocket, e consequentemente aumentam o peso dramático do fato que está em jogo e da “atuação” de um personagem de CGI, que vale ressaltar está impecável.
A equipe de efeitos visuais trouxe um nível de detalhamento e antropomorfização a feição de Rocket que ainda não tínhamos visto em nenhum dos outros volumes. São mudanças sutis, mas necessárias para fazer jus a decisão criativa de centrar o peso dramático da narrativa num personagem que foi constantemente utilizado como alívio cômico. Nesse sentido, Bradley Cooper melhora o que já era ótimo e confere novas nuances, onde cada sentimento complexo é transmitido com perfeição. Noah Raskin também é destaque nos poucos minutos que tem como a versão filhote de Rocket.
Após Ultimato, a Marvel foi amplamente criticada pelo polimento do CGI em seus filmes. Felizmente, o Vol.3 se destaca visualmente perante as demais produções do estúdio – vide Viúva Negra e Thor: Amor e Trovão. Não é um Avatar: O Caminho da Água, claro, mas constantemente me via perdido nos cenários de computação gráfica – pela riqueza de detalhes das galáxias e com destaque para o laboratório de bioforma que até bebe de fontes cronenbergianas.
Grandes cenários e batalhas, quando bem feitas, impressionam, mas são os momentos mais intimistas que o trabalho visual funciona ainda mais. Como nas interações entre Rocket e os seus amigos de laboratório (Lylla, Teefs e Floor), que fazem qualquer coração-de-pedra chorar. Coincidentemente, são nessas mesmas interações que o texto de Gunn brilha ainda mais, acertando em cheio em cada diálogo milimetricamente calculado para fazer a garganta secar. Além disso, o diretor é muito feliz em como utiliza a trama de Rocket e companhia para pôr luz em uma temática importante: o uso (e abuso) de animais em laboratórios – fazia tempos que um filme de ficção não discutia isso tão bem com as massas, estendendo o que o viral Salve Ralph fez em 2021.
Posto isso, é notável que o terceiro filme se apresenta quase como um oásis em meio a um amontoado de produções pasteurizadas e pouco empolgantes do UCM (salve WandaVision e Multiverso da Loucura, este último em partes) e Hollywood que pouco tem a dizer além das cenas de ação e autorreferências. Quantumania é um exemplo para lá de representativo, pois o trailer transmite mais emoção do que a obra como um todo.
Nesse sentido, é possível observar dois fatores correlacionados que fazem Guardiões da Galáxia Vol.3 se destacar positivamente no meio de 40 produções. O primeiro é a liberdade criativa que James Gunn recebeu de Kevin Feige de fazer o filme mais autoral que conseguia fazer: violento, denso, dramático e divertido – com o protocolo embaixo do braço explorando no limite que a censura de 14 anos permite. Nos levando nessa verdadeira montanha-russa através dos dramas e caminhos tortuosos de seus personagens. Isso nos direciona para o segundo fator que torna Vol.3 tão bom: a notável conexão emocional que Gunn tem com o grupo de heróis, o domínio que ele sempre teve sobre eles e o quanto ele é apaixonado pela arte de contar histórias. Essas qualidades, por sinal, foram o que consagraram o diretor a assumir o cargo de CEO da DC Studios. Por esta ótica, Guardiões da Galáxia Vol.3 se engrandece ainda mais para o próprio Gunn, pois este é um pequeno vislumbre do que ele é capaz de fazer com poucas amarras criativas, quem dirá agora com praticamente nenhuma e com a possibilidade de explorar ao máximo o que esse universo riquíssimo da DC tem a oferecer.
Olhando a trilogia como um todo, fica muito clara qual história o diretor e roteirista gostaria de contar. Em um dos momentos mais emocionantes da trama, Lylla se direciona para Rocket e fala “essa história era sua o tempo todo, você só não sabia ainda” num esforço metalinguístico para fazer a audiência revisitar os outros filmes (Guerra Infinita e Ultimato, inclusos) com um outro olhar e observar mais atentamente onde está o coração da história. E tenho certeza que reassistir todo material em que o grupo de heróis aparece com estes olhos só vai acrescentar mais camadas e profundidade para esta história, que consagra a trilogia dos Guardiões da Galáxia como a melhor de todo o UCM.
Ironicamente, um final mais do que perfeito para um grupo que aprendeu a celebrar suas imperfeições.
Filme: Guardians of the Galaxy Vol.3 (Guardiões da Galáxia Volume 3) |
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