Cobertura Festival do Rio | A Conferência, ou “Die Wannseekonferenz”, de Matti Geschonneck

Cobertura Festival do Rio | A Conferência, ou “Die Wannseekonferenz”, de Matti Geschonneck

A Conferência de Wannsee

Para uma conferência que teve consequências tão drásticas para a população judaica e, em menor escala, outros grupos perseguidos, é curiosamente esquecida na história mundial fora da Alemanha. No entanto, foi aqui que nasceu a chamada “Solução Final” para o “problema” dos judeus percebido pelo Terceiro Reich. Foi aqui que diversos departamentos acordaram sobre o sistemático extermínio em massa dos judeus, tanto alemães quanto de territórios ocupados ou amigáveis ao Terceiro Reich. Para ter uma ideia das consequências drásticas desta conferência, o número absoluto de cerca de 6 milhões de judeus exterminados é bem conhecido, mas em termos relativos, os números podem chocar ainda mais: cerca de 90% dos judeus poloneses foram exterminados. 

Em “A Conferência”, filme dirigido por Matti Geschonneck, e escrito por Magnus Vattrodt e Paul Mommertz, a Conferência de Wannsee é dissecada em tempo real. Literalmente – quando Heydrich anuncia, aos cerca de 8-9 minutos do filme, que a reunião duraria cerca de 90 minutos, é exatamente isso que acontece. Com isso, acompanhamos como alguns dos homens mais poderosos do Terceiro Reich discutiram, de forma relativamente leviana, o genocídio de toda uma etnia. Mesmo com diversos questionamentos e objeções, estes não eram de natureza humanitária – todos concordavam que os judeus eram um problema que deveria ser resolvido, só não estavam alinhados no como. 

Acompanhar essas falas, sabendo as consequências monumentais que esses 90 minutos tiveram na história mundial, é no mínimo chocante. É ainda mais chocante pois ouvimos discursos similares até hoje – só acompanhar o crescimento da extrema direita em diversos países do mundo. Chega ao ponto de aterrorizante ao perceber que tudo isso ocorreu de forma incremental, não foi algo da noite para o dia, como exploro um pouco na contextualização histórica ao final dessa crítica. 

Filme minimalista de peso

O filme se passa basicamente em uma sala, com alguns poucos minutos explorando outras salas da mansão, e sua força motriz é o diálogo vai e volta entre todos os oficiais presentes.  E ele não precisa de mais do que isso. O que poderia se tornar monótono nunca o é, em parte pelo roteiro preciso, e em parte pela severidade do que sai da boca dos atores. É impossível bocejar. 

Sobre os atores, inclusive, brinco que um ator alemão não pode se considerar ator profissional enquanto não interpretar um nazista em um filme sobre a Segunda Guerra Mundial. Como o legado violento do nazismo ainda é muito presente na sociedade alemã, o que, diga-se de passagem é ótimo e mais países deveriam fazer o mesmo (oi, Brasil), todos os atores geralmente conseguem imprimir o peso necessário para fazer jus aos personagens históricos que representam. 

Ao  invés de focar no quarteto mais famoso – Hitler, Himmler, Goebbels e Göring, o que o filme mostra é que os ideais do Nacional-socialismo eram amplamente aceitos em diversas camadas da sociedade política e militar da Alemanha. O roteiro traz nuances brilhantes para os pontos de vistas dos burocratas versus dos militares, e não força a mão no julgamento. O filme não precisa direcionar a audiência para um julgamento específico, pois o conteúdo fala por si só.  

Os homens naquela sala não são demonstrados como monstros, são homens ordinários, alguns até extraordinários em suas áreas de especialização – e fica sempre a questão, e se tivessem usado esse conhecimento para algo bom? Mostrá-los como homens ordinários é importante, pois chamá-los de monstros é terceirizar a responsabilidade que todos temos como sociedade na ascensão de tais figuras. Afinal, estas figuras nasceram e cresceram na mesma sociedade que nós todos. Um momento que representa muito bem isso é quando Heydrich e Stuckart conversam sobre suas famílias e seus planos para o pós-guerra, com preocupações tão mundanas quanto qualquer outra pessoa. E isso ocorrre até hoje, só os contextos que mudam. 

Relembrando o Terceiro Reich e a Solução Final 

Escrevi meu trabalho de conclusão de curso sobre o Terceiro Reich, e passei um semestre na Alemanha estudando só isso, então aproveito esse espaço para relembrar um pouco o contexto no qual se insere o filme. Adolf Hitler subiu ao poder de forma praticamente legítima em 1933, após mais de uma década trabalhando para melhorar sua credibilidade dentro dos círculos tradicionais da política e também entre a população insatisfeita. Sob a tutela de Joseph Goebbels, Hitler e os ideais do Partido Nacional-socialista dominaram a sociedade alemã, o que levou a terem apoiadores reais, pessoas neutras que preferiam não se envolver, e uma resistência organizada.

Em relação à “Solução Final” para os judeus, tema do filme, Hitler já defendia seu antissemitismo desde o fim da Primeira Guerra Mundial. O tema do extermínio completo de judeus continuou de particular interesse da alta cúpula do governo até a capitulação do Terceiro Reich. A maior parte das vítimas eram de fato judeus, mas é importante notar que o ódio se estendia para outros grupos, como pessoas que eram percebidas como comunistas ou oponentes políticos, romas e sinti (grupos de ciganos), testemunhas de Jeová, homens homossexuais, negros alemães, entre outros. Alguns desses grupos não foram diretamente sujeitos ao programa de extermínio em massa, mas ainda assim sofreram grandes perdas nos campos de concentração e extermínio. À parte da Solução Final, já haviam realizado políticas eugenistas para eliminar pessoas com deficiências físicas ou neurológicas, sob a campanha conhecida como Aktion T4. 

Desde que subiram ao poder, os nazistas trabalharam para reduzir pouco a pouco os direitos e liberdades dos judeus em território alemão e territórios ocupados. Começaram com medidas legais, como alteração de leis para revogarem direitos garantidos tais como as Leis de Nuremberg, e caminharam para vias mais violentas, como a Noite dos Cristais em 1938, culminando nos campos de extermínio. Tal programa resultou na morte de cerca de 6 milhões de judeus, mais de 13 milhões de civis e prisioneiros de guerra soviéticos, e centenas de milhares de pessoas de outros grupos perseguidos. 

Legado do Nazismo

Hoje em dia, é possível encontrar monumentos a todos os grupos perseguidos espalhados pelas cidades alemãs. A Alemanha é um país que faz questão de se debruçar constantemente sobre seu passado sangrento.  O legado do nazismo é lembrado e estudado de forma constante, e essa reflexão coletiva permite que o país não esqueça dos horrores que viveram sob a extrema direita nazista, que deixou de existir há menos de um século atrás (77 anos, para ser mais precisa). Aqui, é importante um adendo: os nazistas eram, sem sombra de dúvida, pertencentes à extrema direita alemã. O “socialismo” do nome só se aplicava aos alemães arianos, ou seja, partia de uma política de exclusão do outro, o que vai de direto encontro com os princípios de bem-estar social e igualdade pregado pelo real socialismo. E, no fim do dia, uma ditadura é uma ditadura. A própria Embaixada Alemã já teve que se envolver nesse tema, inclusive

O filme é obrigatório para qualquer pessoa interessada pela história da Segunda Guerra Mundial, incluindo para entender como que tudo que aconteceu aconteceu e ninguém impediu esses ideais de se espalharem. Também é necessário para qualquer pessoa interessada em política, pois mostra o que aconteceu por trás das portas e do olhar do público. Um lema alemão sobre a época é “Nie wieder!” (Nunca mais). E é só entendendo como chegamos lá antes que poderemos, como sociedade, garantir que nunca mais mesmo.

A Conferência - Poster Filme: A Conferência (Die Wannseekonferenz)
Elenco: Philipp Hochmair, Johannes Allmayer, Maximilian Brückner, Matthias Bundschuh, Fabian Busch
Direção: Matti Geschonneck
Roteiro: Magnus Vattrodt e Paul Mommertz
Produção: Alemanha
Ano: 2022
Gênero: Drama
Sinopse: Representantes do alto escalão do nazismo alemão se reúnem em Wannsee, ao sudoeste de Berlim, no dia 20 de janeiro de 1942. O principal tema do encontro, que ficaria conhecido como Conferência de Wannsee, é a chamada “Solução Final da Questão Judaica” (Sinopse oficial do Festival do Rio). 
Classificação: 12 anos
Distribuidor: A2 Distribuidora de Filmes, Festival do Rio
Streaming: Indisponível
Nota: 8,5

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