MARTE UM

MARTE UM

 “Sinto que vivemos um momento muito individualista em que a polarização não deixa as pessoas se comunicarem. O Brasil vem sendo muito maltratado e parece que esquecemos o afeto, que sentimos emoções. Marte Um vem para trazer essa ideia de volta, da importância de olhar um para o outro, de sonhar”, diz Gabriel Martins para o AdoroCinema.

            Com roteiro e direção de Gabriel Martins, de No Coração do Mundo, o longa-metragem carrega o nome de um programa espacial lançado no ano de 2012 que tinha como objetivo colonizar o planeta Marte. A partir daí, conhecemos a história de Deivinho (Cícero Lucas), que sonha em ser um grande astrofísico para participar desse projeto, e de sua família na periferia mineira do ano de 2018, marcado pela eleição do presidente Jair Bolsonaro. A família é composta por Eunice (Camilla Damião), a irmã mais velha de Deivinho que está na faculdade e, ao desenvolver um novo amor, decide seguir sua independência, a mãe Tércia (Rejane Faria), que é “vítima” de uma situação inusitada e, com isso, desenvolve uma crise ao achar que está amaldiçoando seu núcleo familiar, e o pai Wellington (Carlos Francisco), que sonha que seu filho se torne um grande jogador de futebol e faz de tudo para tal, mesmo contra sua vontade.

            Inicialmente, ao pensar em Marte Um, a produtora Filmes de Plástico surge na mente. Ela, que fez um trabalho extraordinário em filmes como Temporada, No Coração do Mundo e A Felicidade das Coisas, tem como principal objetivo levar a voz e as vivências da periferia mineira para as telas do cinema, cumprindo-o brilhantemente e se superando no filme assinado por Gabriel Martins. Não à toa, Marte Um foi escolhido para representar o Brasil na corrida para o Oscar de 2023.

            A história começa durante o anúncio da posse da presidência da República por Jair Bolsonaro em 2018, momento de incertezas para pessoas social e economicamente vulneráveis como a família que protagoniza o filme: de classe média baixa e formada por pessoas negras. Instantaneamente, entende-se que, no país preconceituoso e racista em que vivemos, as oportunidades estão mais distantes para eles, o que torna o sonho de Deivinho quase inalcançável, enquanto os desejos do pai refletem a necessidade de melhora.  Todavia, se a vida dos brasileiros marginalizados por diversos contextos tornou-se mais angustiante após o crescimento das discriminações e do conservadorismo em 2018, o roteiro de Martins ressignifica a dor como motivação, lembrando a necessidade de resistir, lutar e permanecer sonhando e ousar para superar e lidar com essas discriminações do dia a dia. É interessante como, mesmo o filme tendo um tempo político marcado, ele não cai num tom de dramaticidade exacerbada ou em um tom caricato de denúncia. O roteiro e a direção conseguem trazer o foco para as minúcias e dimensões das experiências dos personagens diante dos seus anseios e frustrações.

            É possível compreender aquele núcleo familiar como um mini cosmos das periferias brasileiras. O núcleo familiar, retratado, passa por diversas crises internas e aprisionamentos emocionais e econômicos que são a mais pura realidade brasileira. Entretanto, ao observarem a realidade dura que os cercam, entendem que estão todos no mesmo barco. A saúde de Tércia, o emprego de Wellington, o amadurecimento de Eunice e o improvável futuro profissional de Deivinho são símbolos principalmente do racismo estrutural do país. Essa pauta está ali o tempo todo, mas nas entrelinhas, na sutileza, no que não é dito. Entretanto, as cenas mais emocionantes são as de esperança e harmonia, que representam a ideia de união para que tudo um dia melhore. “A gente dá um jeito”, diz o personagem de Carlos Francisco em uma das cenas mais lindas e importantes do longa. Com certeza uma das cenas mais marcantes do cinema brasileiro nos últimos anos.

            Vale ressaltar que muitos dos atores do filme estão em sua primeira experiência na atuação e, mesmo assim, conseguem ser naturais. É, acredito que natural seja a palavra certeira para as atuações. As performances são envolventes e carismáticas, como se estivéssemos vendo uma família real em tela. Na verdade, podemos pensar em muitas famílias semelhantes àquela. As atuações, inclusive, fazem com que certos momentos mais corridos do filme que necessitariam de maior desenvolvimento sejam menos desfavoráveis para a narrativa. Mesmo que o longa caminhe de maneira mais lenta, a montagem mais absorta para contemplação, mesmo que ainda trazendo muita sensibilidade juntamente com a trilha sonora delicada de Daniel Simitan e a fotografia agradável e atenciosa de Leonardo Feliciano, talvez seja o motivo da fraquejada em certos desenvolvimentos, principalmente no de Tércia.

            Ainda assim, Marte Um é um dos melhores filmes de 2022. Em tempos tão sombrios, em que a cultura é tão atacada juntamente com o desprezo e o descaso com certos grupos minoritários socialmente, o filme faz-se ainda mais importante. Ele é um grito de esperança e resistência, que esbraveja a força do povo e da cultura, apesar das mazelas sociais e políticas.


Filme: Marte Um
Elenco: Cícero Lucas, Carlos Francisco, Camilla Damião, Rejane Faria, Ana Hilário, Russo Apr, Renato Novaes, Felipe Santos, Kátia Aracelle, Robson Vieira, Josi Lopes, Thiago Cesario, Hélio Ricardo, Tokinho, Dircinha Macêdo
Direção: Gabriel Martins
Roteiro: Gabriel Martins
Produção: Brasil
Ano: 2022
Gênero: Drama
Sinopse: Uma família negra da periferia de Contagem, Minas Gerais, busca seguir seus sonhos em um país que acaba de eleger como presidente um homem de extrema-direita, que representa o contrário de tudo que eles são.
Classificação: 16 anos
Distribuidor: Embaúba Filmes
Streaming: Indisponível
Nota: 9,5

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