A MORTE HABITA À NOITE

A MORTE HABITA À NOITE

Onde estamos? 

 “A Morte Habita à Noite” segue a história de Raul, um boêmio desempregado, e sua vida em Recife. Ele é apaixonado por sua companheira Lígia, e segue sua vida, catatônico em relação à miséria ao seu redor. Até que, contra sua vontade, tudo começa a mudar. Nesse caminho, conhece Cássia e Inês, duas mulheres que vão despertar novas sensações em sua vida.  O filme lida muito bem com a questão da solidão, resignação, e evolução de Raul. 

 De pano de fundo da trama está Recife, mas sente-se pouco a presença da cidade que, em sua dureza tal qual toda grande cidade brasileira, é um personagem central na história de quem vive às margens. Senti falta dessa conexão maior com a cidade, já que sempre aprecio o papel que centros urbanos têm em moldar toda e qualquer história.  

 O filme é o primeiro longa-metragem de Eduardo Morotó, que dirige e assina o roteiro nessa empreitada.  

 

A influência de Bukowski 

 No início dos créditos, Morotó escreve que o filme foi escrito “a partir do universo literário das obras de Charles Bukowski”. E, para mim, isso não é uma coisa muito boa. O que mais me incomodou no filme foi a relação de Raul com as mulheres à sua volta, estas meros acessórios ao personagem principal, com uma profundidade forjada por suas falas, mas pouco vivida. E Bukowski tem muito a ver com isso.  

 Charles Bukowski (1920-1994) foi um escritor teuto-americano que se ocupava de escrever sobre o homem ordinário e suas relações com o trabalho, as mulheres, e o álcool. Ele foi um dos principais escritores americanos do século XX, apesar de ser uma figura controversa durante sua vida.  

 Uma das maiores críticas ao trabalho de Bukowski é justamente seu tratamento misógino em relação às mulheres. Dado que seus trabalhos são considerados altamente autobiográficos, é difícil apelar para a questão de “separar a arte do artista”. Também há quem argumente que, na época de Bukowski, tais pensamentos misóginos eram a corrente principal da sociedade e que, ao estudar Bukowski, estamos estudando o pensamento da época. O que é válido, claro, pois só ao entendermos como alguns conceitos se constroem é que podemos descontruí-los.  

 Aviso: Alguns spoilers no parágrafo a seguir!  

No entanto, ao invés de se colocar nesse lugar crítico à misoginia de Bukowski, o que vejo em “A Morte Habita à Noite” é a perpetuação da mulher como lugar de acessório – a mulher que abandona o marido e o deixa à deriva, a jovem tarada pelo homem mais velho, a mulher morta que serve como catarse para o homem perdido. Todas apenas peões em uma história, sem profundidade. Na superfície, até poderia parecer o contrário – a mulher que decide largar o marido bundão pois não aguenta mais, a jovem que toma uma atitude para ir atrás do homem que quer, a mulher morta que está feliz por não ser um objeto sexual por um momento que seja. E pode até ser que tenha sido essa a intenção. Mas, ao fim do filme, a minha impressão é que elas não eram seres preenchidos.  Não acredito mesmo que tenha sido essa a intenção de Morotó em um filme com tanto cuidado poético, mas infelizmente é o que acabou chegando em mim como espectadora.

 

A poética da vida ordinária 

Com essa crítica à parte, o filme torna uma situação de um homem comum em algo muito poético. Morotó consegue transformar em extraordinária a ordinária resignação de Raul para com sua vida. E também para com a morte – esta é algo que parece que não o abala profundamente. É apenas mais uma parte da vida. Será que ele mesmo já não morreu e esqueceu de ir?  

 Nessa chave, o filme acaba com uma fala muito pertinente à temática e aos dias de hoje: 

 “Se o coração pudesse pensar, com certeza que parava né. Assim com a gente lava o corpo, devia poder lavar a alma. Mudar de vida como quem troca de roupa. Não pra salvar a vida não, que nem a gente faz quando come e dorme (…) Tem porcos que repugnam a própria porcaria, mas não sai dali, fica ali plantado feito um apavorado diante do perigo (sic). Porcos de destino, feito eu. Minha vida é como se me batessem”. 

 Às vezes o filme se perde em sua própria poesia, mas as cenas finais, que parecem tiradas de um quadro renascentista do Louvre, compensam a jornada por vezes tortuosa.  

 

Os finalmentes

O filme anda a passos lentos e duros, e exige disposição. Sua poética da vida ordinária na cidade é tocante, mas o áudio, grande inimigo de várias produções brasileiras, às vezes atrapalha o entendimento das lindas falas escritas por Morotó. As atuações são naturalistas, convincentes, e realmente parece que somos uma mosquinha na parede observando essa história desenrolar. Como atriz, acho sempre refrescante quando me deparo com atuações que têm essa prontidão e essa naturalidade da fala.

Apesar de algumas críticas acima, “A Morte Habita à Noite” é um produto interessante, que incita reflexão sobre si mesmo e a sociedade. E refletirmos sobre nós e onde vivemos é algo sempre positivo.

 

Filme: A Morte Habita à Noite
Elenco: Roney Villela, Mariana Nunes, Rita Carelli
Direção: Eduardo Morotó
Roteiro: Eduardo Morotó
Produção: Brasil
Ano: 2022
Gênero: Drama
Sinopse: Aos cinquenta anos, alcoólatra e desempregado, a tábua de equilíbrio de Raul é sua paixão por Lígia, que nos últimos anos foi sua parceira de uma vida sem regras. Mas a relação entre os dois não é mais a mesma. Durante uma noite conturbada, Raul cruza com Cássia, uma jovem desgarrada e cheia de vida que vai despertar nele um lado antes desconhecido (Sinopse oficial).
Classificação: 16 anos
Distribuidor: Vitrine Filmes
Streaming: Não
Nota: 7,0

Sobre o Autor

Share

Deixe um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *