Benedetta, novo filme do cineasta holandês Paul Verhoeven, tem provocado muito alvoroço por onde passa. Os religiosos atacam a obra a chamando de blasfêmia, no que logo é retrucado pelo diretor como não sendo possível o emprego de tal palavra para um filme sobre algo que é um fato histórico. Benedetta Carlini existiu, ela foi uma freira e viveu um romance lésbico em pleno Século XVII. Interessante notar que, para este pessoal, às violências da Igreja Católica, tais como as acontecidas nas Cruzadas, na Inquisição e nas centenas de acusações sobre pedofilia, não passam de meros detalhes que, de forma alguma, mancham a imagem da igreja.
Verhoeven já é um velho conhecido por levar o espectador a um misto de sensações. Ao assistirmos aos seus filmes, sabemos que estamos diante de uma grande obra, mas, ao mesmo tempo, nos sentimos incomodados com a naturalidade empregada pelo diretor quando trata, por exemplo, sobre o estupro e a síndrome de Estocolmo em ELLE (2016), ou quando utiliza uma sátira bem escrachada sobre governos autoritários e fascistas caindo quase em uma piada com algo que levou a tristeza e a morte para muitos, como é o caso de Tropas Estelares (1997) – crítica aqui.
Benedetta é um filme adaptado da obra de Judith C. Brown chamada de “Atos Impuros” de 1986. Tanto o livro quanto o filme contam a história de Benedetta Carlini, interpretada, aqui, pela atriz belga Virginie Efira. Benedetta foi uma freira que vivia no convento Madre de Deus, em Pescia, Itália, desde seus 9 anos de idade. Quando adulta começou a ter visões, as quais contava sempre com a presença de Jesus Cristo e que, além da devoção dela para com Ele, há também um desejo mais carnal que, por vezes, no filme, parece ser um sentimento de ambos. Esse desejo se reflete na vida real através de uma relação homossexual com uma freira recém-chegada ao convento, Bartolomea (Daphné Patakia).
Sexo e religião, culpa e penitência, pecado e castigo. Essas são as palavras que definem esse longa – note que não há o perdão – e em momento algum a trama se afasta delas. Verhoeven defende esta sua obra como sendo extremamente respeitosa ao passado, mesmo que seja doloroso para igreja rever às suas violências, sobretudo, para com as mulheres. Nesse ponto o diretor faz questão de acentuar cada momento em que vemos um homem – sempre na figura de alguém de poder dentro da Igreja Católica – determinando o que é certo ou errado através de uma régua própria e que está muito mais ligada aos seus interesses do que ao que, ocasionalmente, pudesse remeter às palavras de Deus. Essa igreja corrompível, desenhada por Verhoeven, é constantemente reforçada por toda a obra. Desde o dote cobrado pela Madre Superiora como forma de garantir a estadia de uma criança, até quando o bispo tem uma fartura em sua mesa e do lado de fora a cidade está caindo para a peste.
Outro ponto sugerido é que o homem, feito à imagem e semelhança, se sente, agora, superior. Como, por exemplo, na cena em que o reverendo determina que Benedetta seja a nova Madre Superiora. A câmera passa por uma imagem de Jesus Cristo, pequena e desfocada, enquanto o reverendo está em total evidência. Uma clara demonstração de que ali é a lei dos Homens que existe e não a de Deus.
Mas se Verhoeven é bem direto em suas posições sobre a Igreja Católica, com a figura de Benedetta ele é bem diferente. Ele deixa que o público tire suas próprias conclusões. Ele abre mão de qualquer determinismo e dá ferramentas para ambas as crenças. Somos cumplices de suas visões, enxergamos o que ela enxerga, mas somos tentados por evidências, ainda que duvidosas, a desacreditar em tudo o que vimos. Benedetta é a escolhida ou uma farsante?
O longa, definitivamente, tem a função de dar ao espectador a oportunidade de escolha em quem acreditar e a quem defender. Os dois vieses são bem construídos e não há uma verdade absoluta. Verhoeven aponta, sim, para determinadas situações, mas sempre tentando ser o mais oblíquo possível e nesse sentido o elenco faz total diferença. Segue o mesmo raciocínio e compõe seus personagens de modo a serem, até certo ponto, obscuros. E aqui vale salientar que, muito embora o filme tenha um foco sexual grande, não há uma exposição exacerbada apenas pela exploração do corpo nú. O que há é uma narrativa em desenvolvimento sob o olhar de pessoas que sabem que precisam violar algumas regras daquele tempo mas com muito sentimento envolvido. E muito disso é justamente pela presença de mulheres a frente da direção de fotografia e de arte, que conseguiram captar a essência da relação entre Benadetta e Bartolomea, não deixando ultrapassar uma linha tênue que separa a beleza do que está em tela de algo mais voltado aos prazeres masculinos.
Muito embora o filme retrate uma época a mais de 400 anos atrás, ainda se faz atual discutir sobre como a religião exerce poder sobre muitas pessoas e comunidades, como a religião ainda interfere na liberdade da mulher e em como o homem ainda subjuga o sexo feminino. Verhoeven sabe disso e não é à toa que a irmã Christine – na cena em que Benedetta é escolhida como a nova Madre Superiora – se revolta com a decisão do reverendo:
“Cabe a nós, irmãs desse convento, escolher a nova superiora”
Tal frase é muito semelhante com a que é usada pelas mulheres em relação à legalização do aborto, algo que é completamente recriminado pela Igreja Católica, mas que, obviamente, deve ser uma decisão da mulher e de ninguém mais.
O arco de Benedetta, guardadas as devidas proporções, se assemelha à de Joana Dar’c, e não me parece uma simples coincidência a citação que é feita à heroína francesa. E como não poderia deixar de ser, já que estamos a frente de um filme que se alimenta de uma narrativa focada no sexo, na religião e na violência, esta lembrança não é pelos seus feitos e sim pela sua dor quando torturada.
Como diria o próprio Verhoeven: “Transgredir é um principio de reinvenção na arte”. Benedetta faz parte de um grande projeto do diretor que, espero eu, culmine em sua tão desejada obra, o filme de seu livro, intitulado “Jesus de Nazaré”.
Filme: Benedetta Elenco: Virginie Efira, Daphné Patakia, Charlotte Rampling, Lambert Wilson Direção: Paul Verhoeven Roteiro: David Birke, Paul Verhoeven Produção: França Ano: 2021 Gênero: Drama Sinopse:Século XVII. Benedetta Carlini é uma freira italiana que faz parte de um convento na Toscana desde sua infância. Perturbada por visões religiosas e eróticas, Benedetta é assistida por uma companheira de quarto. A relação entre as duas se transformará em um romance conturbado, ameaçando a permanência das irmãs no convento. Classificação: 18 anos Distribuidor: Imovision Streaming: Não disponível Nota: 8,0 ESTRÉIA NOS CINEMAS DIA 13 DE JANEIRO DE 2022 |