CRÍTICA – A CURA

CRÍTICA – A CURA

Kiyoshi Kurosawa é um dos meus diretores de cinema favoritos. Seus filmes, que transitam entre os mais diversos gêneros encontram, em sua maioria, no terror o melhor terreno para desenvolver suas histórias cercadas dos mistérios da mente humana e suas angústias, medos e até esperanças. A Cura (キュア, 1997) é um filme de terror psicológico sobre o “embate” entre um detetive policial e um caso complexo de homicídios em série.

Interpretado por Koji Yakusho (Dias Perfeitos, 2023), o personagem central desse filme é um detetive atolado em trabalho que, além dos problemas em sua vida profissional, precisa lidar com sua esposa que sofre de uma condição mental que muitas vezes torna as coisas ainda mais difíceis. A cena inicial de A Cura, inclusive, apresenta essa personagem em uma sessão com seu psiquiatra, enquanto lê a história do Barba Azul para seu médico. Esses poucos minutos de abertura entram na mente do espectador e o acompanham durante o resto da narrativa.

Um dos principais pontos que gostaria de destacar é a atmosfera sombria e misteriosa desse filme, uma marca na maioria dos trabalhos de Kurosawa. Um feito que o cineasta consegue como ninguém é o de utilizar os momentos mais banais para incutir em seu espectador a suspeita de que algo está para acontecer. Embora tenha assistido ao filme algumas vezes, esse sentimento sempre me atinge e posso sentir sua aura quase sufocante me envolvendo.

O enredo de A Cura se desenvolve a partir de uma investigação da polícia em uma série de assassinatos misteriosos. O ponto chave desses crimes é o fato de o perpetrador em todas as vezes ser uma pessoa aleatória, não se tratando de um assassino em série. Na verdade, a única característica que liga as mortes é uma espécie de assinatura, um corte em forma de “X” deixado na garganta de todas as vítimas. Ainda que não haja ligações entre os assassinos, todos eles, quando pegos pela polícia, não resistem e confessam o que fizeram, deixando o detetive cada vez mais envolvido com a investigação.

Uma característica muito inteligente da narrativa elaborada por Kurosawa está em mostrar ao espectador o incitador dos homicídios. Embora Takabe (Yakusho) ainda não tenha chegado a essa conclusão durante a trama, nós, do outro lado da tela, vemos de forma privilegiada as ações do homem que é o elo – ainda não descoberto pelo investigador – entre os assassinos. Em uma parceria com um psicólogo, Takabe sugere que os crimes poderiam ter sido instigados através de sugestão hipnótica.

Nesse ponto, não há mais para onde o espectador fugir, uma vez que todos os fatos de sua trama começam a se interligar e fazer algum sentido dentro da racionalidade. O que mais chama atenção em A Cura é que o protagonista, focado em resolver suas questões dentro daquilo que chamamos de realidade, simboliza o espectador na narrativa. Ainda assim, Kiyoshi Kurosawa gosta de pregar peças em seu público e quase nunca deixa as respostas de forma definitiva. Da mesma maneira em que assistimos o declínio de Takabe, sentimos que nós também estamos caindo com ele.

Utilizando o conceito de mesmerismo – prática de hipnose ocidental pouco utilizada e explorada – Kurosawa conduz sua história a partir da figura de um homem que, em termos gerais, enlouqueceu enquanto estudava o tema na faculdade de medicina. De forma prática, o enredo do filme afirma que esse incitador é nada mais que um andarilho com alto poder de persuasão. Esse poder sugestivo do personagem em questão é tão forte que ele passa a “controlar” a mente de Takabe também, ou acredita-se que é assim que as coisas estão ocorrendo.

O embate entre detetive e suspeito é conduzido de forma a deixar quem assiste mais confuso, uma vez que os diálogos são curtos e muitas vezes desconexos. O resultado deles pode ser visto na vida conjugal de Takabe, que se vê prestes a sucumbir à loucura como sua esposa. Aqui, Koji Yakusho, parceiro de longa data de Kurosawa, imprime todas as emoções de seu personagem de maneira única em sua atuação, que em certos momentos chega a assustar mais do que o misterioso hipnotista.

O que mais mesmeriza na narrativa de A Cura – com o perdão do trocadilho – é o seu desfecho. No último ato do filme a investigação policial acerca dos assassinatos já foi para o espaço e o detetive se vê preso ao criminoso por um fio invisível. A medida em que estas duas personalidades centrais se encontram, é como se um não conseguisse repelir o outro. É importante mencionar que o roteiro não se preocupa de forma alguma em sugerir um final realista ou mesmo justo. Assim, o filme de Kiyoshi Kurosawa tem um dos meus finais favoritos, assim como todo o resto de seu enredo.

A cura do título está presente na narrativa e, a medida em que a trama avança, o espectador – ainda que não esteja completamente ciente – vai entendendo e absorvendo do que se trata essa cura, que só é mencionada propriamente nos últimos minutos e de forma quase subliminar. O mais certo sobre esse filme é que ele ficará com aqueles que o assistirem muito tempo depois de acabar e pedirá, algumas vezes, para ser assistido novamente, tamanha a densidade e magnetismo de seu roteiro brilhante.


Filme: キュア (A Cura)
Elenco: Koji Yakusho, Masato Hagiwara, Tsuyoshi Ujiki, Anna Nakagawa, Yukijiro Hotaru, Yoriko Doguchi.
Direção: Kiyoshi Kurosawa
Roteiro: Kiyoshi Kurosawa
Produção: Japão
Ano: 1997
Gênero: Crime, Suspense, Mistério, Terror
Sinopse: Uma série de assassinatos, chocantes e aparentemente sem motivos, mas com as mesmas marcas horríveis, leva o detetive Takabe a uma investigação labiríntica para descobrir o que os conecta, enfrentando um jogo de gato e rato perturbador com uma pessoa que pode ser o mal encarnado.
Classificação: 18 anos
Distribuidor: Daiei Film, Twins Japan
Streaming: Filmicca
Nota: 10

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