Asteroid City (2023) se passa em uma pequena cidade desértica estadunidense, no ano de 1955, local onde uma vez um asteroide caiu. É nela que é organizado uma convenção para jovens cientistas. O que deveria ser apenas um evento para prestigiar as futuras mentes mais brilhantes do mundo toma rumos inesperados quando um imprevisto ocorre.
Asteroid City (2023): uma boneca russa
Com Asteroid City (2023), Wes Anderson nos oferece quase que uma boneca russa cinematográfica; uma camada, dentro de uma camada, dentro de uma camada. Primeiramente, no interior dessas camadas, temos uma peça de teatro ambientada em uma cidadezinha ficcional no deserto estadunidense. Ademais, acima disso, encontramos os bastidores da tal peça; vemos seu escritor, seu diretor, o elenco, e outros elementos dessa linha. Afinal, na camada mais externa, um making-of da peça — a lá Além da Imaginação (1959) —, em preto e branco, com um apresentador sobreposto na tela. Acaba sendo quase como uma janela didática para a segunda camada.
A metalinguagem dentro do próprio método
Dessa maneira, neste processo de interiorização metalinguística, o diretor acaba inclusive propondo uma certa desconstrução (ao mesmo tempo que amplifica) do seu próprio método. Uma vez que já se tenha assistido algum filme do diretor (e isso inclui o próprio em questão), sua forma fílmica é bem evidente. Wes gosta de cores pastéis e extremamente presentes; planos simétricos; atores rígidos e, até certo ponto, desanimados; movimentos rápidos de câmera; profundidade de campo; além de outras questões formais e até narrativas que deixariam este parágrafo muito extenso se fossemos adentrar todas. Em outras palavras, Anderson costumeiramente leva suas obras a um estado artificial.
Assim sendo, é possível perceber como as camadas de Asteroid City (2023), conversam com tal método de maneiras diferentes (mesmo que similares). Ainda que o cinema, em muitas instâncias, possa ser lido como a arte do burlesco — visto que rola todo um exercício da visão pessoal de um cineasta sobre um mundo que existe ou não —, é possível argumentar que também é a arte que mais se aproxima da realidade. Essa visão do cinema como real é, por certo, mais evidente ainda quando pensamos no cinema documental ou até na ótica do realismo Baziniano. André Bazin, crítico e teórico francês, argumentava sobre a importância do cinema reproduzir o mundo como ele é, servindo como um olhar testemunhante.
O Teatro em Asteroid City (2023)
Em contrapartida, o teatro é uma arte que assume a artificialidade do seu mundo mais evidentemente que o cinema. Nem é necessário entrar em méritos mais técnicos do teatro — toda a construção de cenário, a expressão dos atores, entre outras peculiaridades —, apenas enxergar a essência do mesmo como obra artística. Afinal, o teatro, acima de tudo (e divergindo de algumas instâncias do cinema) é uma encenação. Em suma, o teatro é uma arte que se desdobra em um palco, em um momento específico, para um espectador específico. Em outras palavras, o teatro depende de sua artificialidade; só o fato de se desenrolar em um palco, e não no mundo, já barra a aproximação com a realidade.
Portanto, quando Wes Anderson assume a camada mais interior de Asteroid City (2023) como uma peça de teatro, o diretor está consequentemente assumindo a artificialidade daquele mundo. Dessa forma, ao assumir o artificial presente em seu mundo, o diretor consegue artificializa-lo ainda mais. Por exemplo, os cenários são ainda mais falsos do que em outras de suas obras; a própria imagem (belíssima) do alienígena sintetiza isso muito bem (é claro que, temos outras questões que artificializam-se além do cenário; é apenas um exemplo pra não soar muito prolixo).
Evidenciando a artificialidade
Assim sendo, o recorte do filme que se passa na fictícia cidade estadunidense é, talvez, o mais artificial que Anderson já chegou; e o mesmo consegue proporcionar um motivo formal para isso. Entretanto, ao mesmo tempo que o diretor maximiza seu método (até o momento), de uma forma poética até o rejeita. Isto é, ao se exercitar ao máximo, ele também assume em todas as instâncias a mentira de seu mundo (principalmente ao aplicá-lo ao teatro). Wes coloca o seu método em um local do qual o mesmo está dizendo que só é funcional ao aceitarmos seu distanciamento do mundo real. Em outras palavras, o diretor assume as restrições e as limitações da sua própria forma de fazer filmes. O que, de certo modo, torna a forma ainda mais desafiadora, já que propõe para elas situações das quais a mesma não havia atingido ainda.
Como resultado, ao sobrepomos as camadas de seu filme, a mentira (e aqui trato “mentira” como um elogio) se torna ainda mais evidente. Afinal, o cerne de seu filme é uma peça de teatro; entretanto, até a peça é falsa, pois no fundo, é tudo um filme. É mentira atrás de mentira, artificial atrás de artificial, a forma cada vez mais forte e auto-desafiadora. Decerto, a própria forma que Asteroid City (2023) adquire em suas duas camadas externas estabelece um contraste; desde mudança das cores presentes e naturalmente iluminadas para o preto e branco assumidamente iluminado em estúdio, até mesmo a inclusão de uma cena onde os atores repetem em coro uma frase extradiegética (que, digamos assim, é dita mais para o espectador do que para o mundo do filme).
A dolorosa conversa sobre o luto
Todavia, a beleza de Asteroid City (2023) não se resume apenas a uma linda brincadeira formal e metalinguística, mas também se encontra em um tocante discurso existencialista. Não apenas o filme trata, sumariamente, sobre luto, mas também o faz em passagens belíssimas (e algumas até, ainda, metalinguísticas) sobre o assunto. Analogamente, quase todas as cenas das quais Augie (Jason Schwartzman) e Midge (Scarlett Johansson) interagem são à distância, por exemplo, a partir de janelas, cada um em sua casa.
Ambos os personagens perpassam um tipo de luto; um deles mais literal, sua esposa morreu; a outra uma espécie de luto pelo direcionamento de sua vida. Assim sendo, a limitação física dos dois personagens não só literalmente os distancia, mas também faz o olhar de cada um deles voltar para si, e estabelece certo diálogo sobre a solidão e o aprisionamento do luto. Não é à toa que mesmo que os dois personagens desenvolvam uma relação carnal, isso praticamente nunca é mostrado.
Outrossim, os personagens do Schwartzman (que, afinal, são dois, Auggie e o ator de teatro que o interpreta) acabam se convergindo para uma mesclagem de um com o outro. Isto é, ambos os personagens enfrentam o luto, e aquele mais “externo” (o ator de teatro), acaba inevitavelmente buscando em seu personagem (Auggie) e em seu trabalho, o conforto para lidar com sua situação sombria. Igualmente, até a escolha de Jason Schwartzman para ser esse personagem acaba conversando com a carreira de Anderson. Afinal, Schwartzman é o ator mais recorrente da carreira do diretor; ao colocá-lo como um personagem ator, que interpreta (e se transforma) em um personagem, acaba afirmando ainda mais a relação dos dois.
A assertiva mistureba de Asteroid City (2023)
Em suma, Asteroid City (2023) não é só um “evento cinematográfico”, reunindo um elenco estelar (até Seu Jorge, que já trabalhou com o diretor). Analogamente, também não é só um filme visualmente lindo, formal e metalinguístico. Conforme, também não é só uma história sobre luto. Por fim, Asteroid City (2023) é um belíssimo e emocionante amálgama disso tudo, que além de ser um dos melhores do ano, é um grande passo para acertar cada vez mais o método de Anderson e sua posição como um dos maiores diretores do século XXI.
Filme: Asteroid City Elenco: Jason Schwartzman, Scarlett Johansson, Tom Hanks, Jeffrey Wright, Tilda Swinton, Bryan Cranston, Edward Norton, Adrien Brody Direção: Wes Anderson Roteiro: Wes Anderson, Roman Coppola Produção: Estados Unidos Ano: 2023 Gênero: Comédia, Drama Sinopse: Em uma pequena cidade desértica estadunidense, no ano de 1955, é organizado uma convenção para jovens cientistas. O que deveria ser apenas um evento para prestigiar as futuras mentes mais brilhantes do mundo toma rumos inesperados quando um imprevisto ocorre. Classificação: 14 anos Distribuidor: Universal Pictures Streaming: Não disponível Nota: 9,0 |
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