CRÍTICA – ECCE BOMBO

CRÍTICA – ECCE BOMBO

Nanni Moretti: uma proposta de cinema!

Sem dúvidas, Nanni Moretti é um dos diretores que mais instigam minha paixão pelo cinema. Como um grande amante da sétima arte, o cineasta italiano adora criar conexões com suas referências. Isso se manifesta não apenas por meio dos diálogos em que os personagens discutem essas influências, mas também por metáforas visuais inseridas de forma implícita, elementos que enriquecem a estrutura de seus filmes. Essa proposta de um cinema autoconsciente, presente em suas obras, dialoga com o imaginário da sétima arte. Seu cinema é também muito pessoal, incorporando elementos da própria vida do cineasta. Ao referenciar obras de diversos autores já conhecidos do espectador, e por seu caráter fortemente autobiográfico,  aprofunda-se a possibilidade de produção de sentido dentro de sua filmografia, tornando sua obra ainda mais rica. Ecce Bombo

Embora não considere que “Ecce Bombo” (1978) seja um dos seus maiores filmes, nem sequer um grande filme, os elementos que compõem a sua filmografia, e que amadurecerão com o tempo, já se fazem presentes aqui.  Encaro “Ecce Bombo” como parte da busca por essa identidade cinematográfica do diretor, ainda pouco consciente dos seus méritos enquanto artista. No entanto, considerar o filme como uma obra menos madura não se trata de um demérito, mas sim de uma expressão inicial de um cineasta que, após seu lançamento, continuou a se dedicar ao cinema por pelo menos mais quatro décadas… E ainda o faz! É inegável que a experiência foi lapidando a obra de Nanni Moretti até surgirem fenômenos como “Minha Mãe” (2015), “O Quarto do Filho” (2001) e “Palombella Rossa”(1989).

Ecce Bombo: por um cinema autoral

O primeiro elemento que compõe a marca autoral de Moretti é a constante alusão ao universo da sétima arte, evidenciada logo na primeira cena de “Ecce Bombo”. Nesse momento inicial, dois personagens, que serão revelados como atores, entram em um trailer para interpretar uma cena erótica. Antes de adentrarem no veículo, olham para os lados, como se alguém pudesse estar observando (seríamos nós, insinuando que os personagens têm consciência de nossa presença?). Segundos depois, ouvimos um “STOP!” gritado por um personagem que logo identificamos como o diretor do filme. Toda uma equipe e o set de filmagem são então revelados introduzindo a dimensão metalinguística e o caráter autoconsciente da obra – assim como ocorre em “A Noite Americana” (1973), de François Truffaut, em uma semelhança imagética que soa proposital.

Além disso, Nanni Moretti interpreta o protagonista de “Ecce Bombo”, algo que se repetirá ao longo de sua carreira, inclusive em seus filmes mais recentes, como “O Melhor Está Por Vir” (2023). Essa escolha faz todo sentido, pois reforça sua proposta de um cinema profundamente pessoal, subjetivo e autobiográfico, centrado nos dramas e nas convicções artísticas do próprio diretor. Ao interpretar a si mesmo, ele incorpora seus conflitos individuais à narrativa minimizando o uso de artifícios e evitando perdas de espontaneidade e autenticidade – algo que poderia ocorrer se outro ator fosse escolhido. Em linha com sua proposta de um cinema autoconsciente e metalinguístico, Moretti também defende essa decisão dentro do próprio filme, através da fala de um outro personagem, como se estivesse ali para enunciar as suas próprias intenções.

Além da proposta de um cinema autoconsciente, subjetivo e pessoal que permeia toda sua obra, Nanni Moretti também explora temas políticos – que raramente chegam a ocupar a centralidade – e busca a construção de um rigor visual apurado, baseado em planos sofisticados, de alto poder expressivo. Em “Ecce Bombo”, essa autoconsciência e precisão imagética se combinam de maneira única em duas cenas inter-relacionadas. Em um diálogo, o protagonista Michele Apicella, ao ser convidado para uma festa, projeta-se na situação e diz: “Vou e fico próximo a uma janela, de perfil, em contraluz”. Na cena da festa, o personagem é filmado exatamente dessa forma criando um momento impactante, em que a proposta formal do filme, baseada na autoconsciência, se concretiza. A associação entre essas duas imagens, que se referenciam, evidencia a intenção de constante diálogo com o espectador, sujeito ativo nesse processo de associação.

Essa cena também retoma a ideia de que existe uma “entidade observadora” – presente em diversas instâncias, mas que se materializa na presença do pai – refletindo diretamente no comportamento dos personagens e impactando nas suas ações.

Ecce Bombo e narrativa: a busca por identidade

O grupo central do filme é formado por cinco amigos introspectivos, que possuem dificuldade de se comunicar com as pessoas ao seu redor. Essa dificuldade tem diversas origens, mas reside principalmente no fato de que esses amigos não se identificam com os interesses de sua própria geração, sentindo-se deslocados e alienados em relação às expectativas e comportamentos dos que os cercam. Seus hobbies, como artes, política e filosofia não são compartilhados por todo o coletivo e, por isso, sentem-se estranhos. A luta contra esse sentimento de estranheza e a busca por refúgio – especialmente, uns nos outros – vão tomando conta da narrativa.

Para tentar se enturmar entre os jovens, os amigos recorrem à observação e a mimese, sobretudo adotando comportamentos e jargões que representam estereótipos da juventude. Essa postura diante das situações exige um distanciamento cada vez maior da realidade e uma desconexão crescente de sua própria essência. Eles fracassem totalmente e o resultado ocorre de maneira adversa ao que era esperado; assim, os amigos vão adotando uma performance baseada em comportamentos cada vez mais estranhos, tornando-se indivíduos cada vez menos autênticos, piorando a sua inclusão social e a qualidade dos relacionamentos (pessoais, familiares e amorosos) em que estão inseridos.

A situação vai se escalonando de tal forma que eles se encontram em meio a uma crise de identidade. Percebendo a gravidade do problema, um dos amigos sugere: “Vamos nos reunir e fazer coisas normais, como jogar basquete”. Essa cena não só escancara a crise, como é uma das mais irônicas do filme. No momento em que deveriam apresentar uma solução factível para o problema dos personagens, sugere-se algo ainda mais absurdo e mais distante da realidade deles, descompromissada com o resgate da essência. O esporte, algo que nem sequer tinha sido mencionado até então, como provável hobbie ou interesse, é colocado como possibilidade irrealizada.

Cada vez mais distantes da sua realidade, e de todos à sua volta, os amigos procuram soluções ainda mais absurdas, e impraticáveis, para essa crise. E se tivessem nascido antes, como algumas décadas atrás? Identificar-se-iam com as pessoas do seu tempo? Quem eles poderiam ter sido? Quais grandes feitos poderiam ter realizado? Ao apresentar uma cena em que os personagens refletem diretamente sobre isso em um lugar deserto e no escuro, o diretor os isola  ainda mais de sua realidade (física e social) reforçando a sensação de deslocamento. Ao filmar os personagens apenas de forma parcial, ratifica o sentimento de incompletude dos mesmos. Como não deixar essa angústia tomar conta completamente?

Michelle: a autoironia como recurso

O filme vai sugerindo que essa busca não tem um fim, e que os personagens precisam aprender a lidar com seu estado de ânimo; ao invés de eliminar a tristeza, deveriam aprender a conviver com ela. Michele, que representa o próprio Nanni Moretti, utiliza a autoironia como seu principal recurso. Como praticamente tudo na obra de Moretti é metalinguístico – tese que defendo a partir dessa crítica –, isso dialoga com a forma como o cineasta emprega a ironia para transmitir sentimentos complexos e abordar diversas críticas sociais, equilibrando humor e drama. De maneira recorrente, os personagens interpretados por Moretti em cada um de seus filmes (que seriam diversos alter egos) carregam uma profunda angústia e questionamentos existenciais, que se refletem nos conflitos presentes na narrativa  – o que provoca comparações frequentes com Woody Allen. Os dois autores, cada um a sua maneira, utilizam a ironia ao abordar a condição humana, baseada na exploração do contínuo enfrentamento da tristeza. É uma relação ambígua, que revela a fragilidade da existência, mas também incentiva a busca por propósito e significado.

Uma cena fundamental para compreender a ironia é aquela em que Michele diz: “Eu estou tristíssimo, mas sou teatral, vital…”, enquanto seu amigo seria um triste “abatido”. Apesar do seu estado de espírito, ele transforma seus dramas existenciais em obras de arte utilizando a autoironia como forma de lidar com a própria angústia, transformando a tristeza em algo vital. Aqui, resume essa complexidade do sofrimento na experiência humana, que expõe vulnerabilidades, porém serve como fonte de criatividade e autodescoberta. Nesse diálogo, aparentemente inofensivo ou desconexo de um contexto amplo, Nanni Moretti sintetiza a base que será o alicerce do seu cinema.

Nanni Moretti: a jornada de um cineasta!

Outro aspecto que reforça o caráter metalinguístico de Nanni Moretti em “Ecce Bombo” é a relação que o cineasta estabelece com a história do próprio cinema. Na busca por sua identidade cinematográfica, Moretti mimetiza, repete e esgota diversos elementos oriundos dos mestres do “passado” (há uma certa reverência aos anos 1960 em “Ecce Bombo”) . Mencionei a alusão a Truffaut no início do texto, mas a longa verborragia política, às vezes não tão crucial e passível de exclusão – muitas vezes beirando o cansaço – remete às experiências de Godard em seu período mais radical. Quando pensamos no próprio cinema italiano, que já não ocupava posição de destaque no “cinema artístico” mundial, a nostalgia fica por conta de sua exaltação a Fellini (recordemos a cena da dança na festa, na qual o seu nome é proferido por um dos personagens).

E essa busca por identidade cinematográfica (dentro de um contexto fílmico e histórico conturbado), que observamos em “Ecce Bombo” e que atravessará boa parte das suas obras, não culmina totalmente neste filme. Com o passar do tempo, percebo que o diretor abandona elementos dispensáveis, como a verborragia política (que não deve ser confundida com teor político) e se concentra na capacidade expressiva de seus dramas. Ao fazê-lo, Moretti combina rigor imagético, autoconsciência e ironia criando um cinema mais autêntico e impactante. Essa evolução demonstra não apenas seu crescimento como cineasta, mas também sua habilidade em abordar questões complexas de maneira mais direta e emocionalmente ressonante – em que “Minha Mãe” e “Quarto do Filho” se destacam.


Filme: Ecce Bombo
Elenco: Nanni Moretti, Piero Galletti, Luisa Rossi, Susanna Javicoli, Glauco Mauri
DireçãoNanni Moretti
Roteiro: Nanni Moretti
Produção: Itália
Ano: 1978
Gênero: Comédia, Drama
Sinopse: Ecce Bombo é uma comédia dramática dirigida e estrelada por Nanni Moretti, que retrata a vida de Michele, um jovem cineasta que se sente deslocado em sua própria geração. Através de um olhar introspectivo e bem-humorado, o filme explora a busca de Michele e seus amigos por identidade e conexão em um mundo que parece não compreendê-los.
Classificação: 14 anos
Distribuidor: Cineteca di Bologna
StreamingPrime Video/Reserva Imovision
Nota: 7,0

Sobre o Autor

Share

Deixe um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *