Recentemente, fomos apresentados à obra mais particular e íntima da carreira de Steven Spielberg, Os Fabelmans, de 2022, que de certa forma se encaixa como uma pseudo autobiografia do cineasta. Um fenomenal acerto desse filme é a sua abordagem “universal” – apesar de ilustrar o início da sua paixão pelo cinema e uma dura parte de sua juventude e delicada relação materna, a linguagem na qual o filme se comunica com o espectador é abrangente e capaz de proporcionar uma catarse pessoal em quem assiste, tornando assim, de um filme autobiográfico, uma história envolvente que transcende a pessoalidade do autor. Estranho Caminho
Tudo bem que, diferente dos EUA (por mais que lá encontremos também graves problemas, mas não de natureza econômica), nossas terras tupiniquins são muito mais miseráveis e com uma enorme falta de oportunidades. Mas o que vemos em “Estranho Caminho”, do diretor cearense Guto Parente – pertencente à uma dinâmica que remete ao movimento cinematográfico “coletivo alumbramento” – é, infelizmente, um pouco alienado.
Situado na infame pandemia de Covid-19, seguimos, então, basicamente os mesmos caminhos traçados por Guto no fatídico ano de 2020: jovem cineasta, em circunstâncias adversas, passa um tempo na casa de seu pai após quase uma década sem vê-lo. Numa mecânica de estranheza que encobre uma possível afetividade, temos, desse tenso capítulo, rodeado pela preocupação da saúde do pai (a possibilidade de contaminação pelo vírus), muita angústia, devaneios numa narrativa de reconciliação e uma fenda que se abre no “espaço-tempo” cinematográfico para uma autoterapia do diretor, feita e escrita por ele, destinada a ele próprio.
Confeccionando uma atmosfera predominantemente consistente de apreensão nos primórdios do coronavírus, o roteiro nos enclausura num protagonista acanhado e singelo que caminha por uma corda bamba enquanto não se sente confortável na casa de sua distante figura paterna, ao mesmo tempo que anseia uma admiração, já que seu pai é um enigmático e produtivo escritor. Essa consistência atmosférica, aliás, garante ao filme sua integridade, pois, de resto, ao invés de uma abertura “universal“, temos um subtexto de crítica política muito direcionada e de escopo muito fechado – da mesma forma que os planos, mesmo em áreas externas ao ar livre, são sempre enclausurados e claustrofóbicos.
Voltando a sua consistência, há muita apreensão criada, afinal, não é qualquer senhor, mas sim, Carlos Francisco (de Bacurau e Marte Um), que interpreta Geraldo, o pai. Este ator não é comum. Com um carisma sem igual, ele sabe ser uma figura admirável e ao mesmo tempo detentora de um lado obscuro angustiante. Mas, seja lá o que for que ele esconda, fato é que a possibilidade de sua ausência, dado seu debilitado estado de saúde, é um ponto de dar nos nervos; se ele parte, algo de nós parte junto. Guto sabe gerenciar bem o caminho de Geraldo até o desfecho.
Já o pacato protagonista David, de Lucas Limeira, traz uma boa atuação para um personagem monótono. David é constantemente indefeso, o que incomoda ainda mais quando está diante de cenas lamentáveis do descaso de saúde pública em um Brasil no cenário de imprudência na gestão da pandemia pelo governo do coisa-ruim. A agonizante cena em que ele pede por socorro para um atendimento ao seu pai, enquanto a médica os aborda de forma cínica e imprudente, é realmente revoltante. E isso só reforça a perspectiva muito específica, melancólica e direcionada como uma – justificável – lamentação.
No frigir dos ovos, Estranho Caminho sobrevive porque, como drama, possui uma carga funcional, e claro, é um livre discurso autoral sobre sua perspectiva paterna e sobre sua perspectiva política de um contexto político específico. Contudo, é muito centrado em si mesmo e, com isso, fica fechado nas próprias convicções que são, ironicamente, enclausuradas até demais. E é importante ressaltar: um autor tem sim o direito de fazer uma obra que seja subjetiva em suas próprias percepções de mundo. Mas isto tem um custo muito alto, é só pensar que Spielberg, em Os Fabelmans, nem mesmo manteve o sobrenome de sua família, enquanto Guto Parente leva o nome de seu próprio pai para o personagem no filme e ainda, no final, o dedica em seu nome. No fim do dia, vale pensar: qual abordagem é mais eficaz?
Filme: Estranho Caminho Elenco: Lucas Limeira, Carlos Francisco, Rita Cabaço, Tarzia Firmino, Renan Capivara, Ana Marlene Direção: Guto Parente Roteiro: Guto Parente Produção: Brasil Ano: 2023 Gênero: Drama, Fantasia Sinopse: Um jovem cineasta que visita sua cidade natal é surpreendido pelo rápido avanço da pandemia e precisa encontrar seu pai, com quem não fala há mais de dez anos. Depois do primeiro encontro, coisas estranhas começam a acontecer. Classificação: 12 anos Distribuidor: Tardo Filmes Streaming: Indisponível Nota: 8,0
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Assisti esse aí ontem. Filme bem maneiro; me surpreendeu!