CRÍTICA – INCOMPATÍVEL COM A VIDA

CRÍTICA – INCOMPATÍVEL COM A VIDA

Não me compete, Wandryu Figuerêdo, autor deste texto crítico, determinar a função da arte, mas sim explorar algumas das questões pertinentes. No cenário de 2023, paira a incerteza sobre se a expressão artística deve ser considerada como uma forma de terapia. Tanto criadores quanto espectadores divergem sobre a utilidade da arte na contemporaneidade, especialmente em uma época marcada pela instabilidade emocional generalizada. No entanto, a arte pode ser empregada como uma ferramenta de enfrentamento, especialmente em questões relacionadas ao “eu”. Medo, amor, confiança e pavor – essas são características que a arte utiliza para estabelecer conexões profundas com o público. Na criação de sua obra, Eliza Capai aborda um tema ainda sensível para muitos espectadores: o corpo feminino. Apesar do recorte temático específico, os corpos femininos representados permanecem privados de ações livres. Nesta narrativa, os desafios explorados estabelecem conexões com os opostos mais realistas da existência: a vida e a morte. Incompatível com a vida.

Ao se posicionar diante da câmera para expressar seus sentimentos, Eliza, diretora do filme e uma das personagens, não limitou a narrativa à sua perspectiva pessoal. Em vez disso, ela incorporou diversas visões e caricaturas para enriquecer o diálogo da sua trajetória pessoal. A escolha de não transformar o documentário em uma mera reflexão egocêntrica da diretora sobre si mesma ao filmar e relatar seus problemas é notável. Ao contrário de uma abordagem egocêntrica, a diretora aborda cada personagem como uma “constelação” única dentro dos planos. Suas expressões faciais diante da câmera parecem refletir uma ferida que ainda não cicatrizou, mas que continua a ser exposta diariamente. Apesar da artificialidade que a câmera pode transmitir nos espaços filmados, esse ambiente aparentemente “gelado” é quebrado para dar espaço à naturalidade dos gestos e emoções expressos de maneira minimalista. 

De certa maneira, a obra também lida com diferentes tipos de arquivos, incluindo os materiais concretos capturados pela câmera e os materiais “imaginários”. Os materiais “imaginários”, referidos nesta crítica, são as memórias que as personagens não possuem materialmente, mas que persistem em suas lembranças, principalmente recordações negativas. A abordagem dessas memórias, como foram narradas, excluídas e até mesmo criminalizadas por circunstâncias além de seus controles, destaca não apenas a incompatibilidade na vida dessas crianças/fetos, mas também do corpo feminino. Essas memórias criam um espaço ilusório em nossas mentes, proporcionando cenários que os dedos apontavam para seus rostos Se um laudo não pode dar conta dos sintomas apresentados, um documentário não é capaz de fornecer essa resposta, e Eliza não busca instigar tal sentimento, ela deseja expor. 

Não se deixem iludir pelo termo “expor”; em nenhum momento, a diretora coloca suas personagens em posição de vulnerabilidade, algo desnecessário, considerando que o sistema brasileiro já o fez e continua a praticá-lo ao longo da história. O que inicialmente parecia ser um recorte da vida de Eliza evolui para um testemunho dos fardos que as personagens carregarão enquanto viverem. Apesar dos esforços para esquecer, seus ventres parecem ser eternas testemunhas, sugerindo até um futuro encontro iminente com aquelas perdas, mesmo que permaneça inatingível. 

Acredito que qualquer tentativa de resumir este filme seria inadequada; é preferível projetar a obra em uma tela, permitindo que as fragilidades se manifestem e sejam confrontadas juntamente com a visão de Eliza Capai.


Filme: Incompatível com a Vida
Direção: Eliza Capai
Roteiro: Eliza Capai
Produção: Brasil
Ano: 2023
Gênero: Documentário
Sinopse: Incompatível com a Vida é um longa-metragem documental brasileiro dirigido por Eliza Capai que reflete sobre vivências da maternidade. Quando descobriu a gravidez, a cineasta decidiu registrar diversos vídeos no período de sua gestação. Porém, algum tempo depois, o feto foi diagnosticado com uma má formação “incompatível com a vida”. Com a descoberta, o projeto de Capai tomou um novo rumo: partindo dos registros de sua própria gravidez, a diretora acompanhou os relatos de outras mulheres que compartilharam de experiências parecidas com as dela, trazendo temas como vida, morte e políticas públicas.
Classificação: 14 anos
Distribuidor: Descoloniza Filmes
Streaming: Indisponível
Nota: 8,0

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