Ao término da exibição do filme “Napoleão”, na cabine de imprensa em que estive presente, pude observar as primeiras reações das pessoas que compartilharam a mesma sessão. Mal subiram os créditos, e já se ouvia comentários como: “Eu terminei o curso de história e esse filme é patético!” Esse feedback inicial me levou a seguinte reflexão: quão necessário é retratar figuras históricas de maneira rigorosamente fiel? Por que esse anseio tem sido cada vez mais frequente por parte do público e da crítica?
Nos últimos anos, tenho notado uma certa homogeneidade no pensamento crítico em relação aos filmes. A forma como as pessoas se relacionam com o cinema tem sido praticamente as mesmas. O grande problema nisso é que o cinema, sendo uma forma de arte, idealmente deveria evocar uma gama variada de emoções e reflexões em espectadores distintos, despertando anseios diversos. É improvável que os critérios de apreciação de um filme seja igual. É como se as pessoas estivessem aprendendo, com seus tutores, a eleger se um filme é bom ou não, baseado nos critérios desses tutores, e ao assistir, enxergam através dos olhos destes. Expressões como “diálogos expositivos em excesso”, “abundância de closes” e “imprecisões históricas” têm se tornado cada vez mais comuns como pontos negativos associados a uma obra cinematográfica, jargões que se tornaram quase que regras gerais.
Nesse contexto, surge o novo filme de Ridley Scott, lançado em meio a diversas polêmicas, incluindo o deboche do próprio diretor em relação à críticos e historiadores franceses que questionaram os desvios históricos do longa. Uma atitude, aliás, que considero totalmente desnecessária por parte de Scott, que já enfrentou críticas semelhantes em obras anteriores como “Cruzada” e, de forma mais intensa, em “Gladiador”. Tornou-se comum para muitos assistir a filmes com a expectativa de que se assemelhem estritamente à realidade, como se isso fosse um dos critérios de qualidade. Quanto mais fidedigno, melhor. Uma procura pelo realismo que se torna quase fetichista. Não é a toa que o número de matérias com títulos como “O que é real e o que não é em determinado filme?” são cada vez mais constante.
Quando se trata de uma figura como Napoleão, a expectativa por uma narrativa completamente alinhada ao fato histórico é ainda maior. No entanto, o diretor não se preocupa com tal precisão e isso não faz falta alguma. O fato é que um filme, enquanto arte, enquanto peça ficcional, não é fonte histórica. Ele possui dramatização, um recorte e liberdade criativa do diretor. Faço das palavras de Ismail Xavier as minhas. O crítico defende a ideia de que devemos valorizar a opacidade das imagens, interrompendo a leitura fácil, para permitir que a imagem se destaque por si mesma. Isso implica em uma nova relação entre o filme, como uma entidade independente, e a realidade, indo além da simples representação. Xavier sugere a intransitividade radical, onde cada imagem é auto-referente, proporcionando sensações e pensamentos únicos em cada obra cinematográfica.
Diante disso, o enfoque de Ridley Scott é na representação de Napoleão por uma perspectiva menos convencional. É crucial explorar como essa abordagem não apenas desafia as premissas tradicionais sobre figuras históricas, mas também oferece uma visão mais íntima e humana do lendário líder. Ao desviar-se das características comumente associadas a Napoleão, Scott mergulha nas complexidades do personagem. Essa abordagem, embora possa inicialmente surpreender os espectadores acostumados com representações mais tradicionais, revela-se uma escolha ousada, destacando a natureza multifacetada de Napoleão Bonaparte (Joaquin Phoenix). O filme acompanha a trajetória do imperador desde o Período do Terror, no final da Revolução Francesa, até sua morte no exílio de Santa Helena. Ridley Scott opta por construir a narrativa sob o olhar de Josephine (Vanessa Kirby), a mulher a quem Napoleão dedicou seu amor durante esse período.
O problema é que Ridley Scott traz um recorte de Napoleão de modo multifacetado, trazendo para as telas tanto um épico grandioso, repleto de batalhas monumentais, como algo mais intimista. Para atingir esse objetivo, ele precisa conciliar todas essas características à personalidade do protagonista. O que se revela na tela, portanto, são dois “Napoleões” distintos. O primeiro, que chamo de “Napoleão Cafona”, é um Napoleão que cai das escadas ao fugir dos parlamentares antes de aplicar o golpe que o tornará primeiro cônsul. Esse Napoleão experimenta o medo antes da batalha de Toulon, passa a carta de Josephine em seu pescoço para que ela sinta seu perfume, é um homem apaixonado que exala melancolia em suas cartas e sente piedade de um menino que lhe pede a arma de seu pai falecido. Essa representação foge completamente do imaginário popular, destacando-se por seu arco dramático principal centrado no relacionamento com Josephine, mesmo após o divórcio. Esse arco tem, nitidamente, maior cuidado do diretor em sua concepção e possui os momentos mais fortes do longa. Aqui o ego, a bondade, o amor, a autopiedade enriquecem o personagem.
O segundo Napoleão, que chamo de “Napoleão Destemido”, é aquele que, teoricamente, mobiliza seu exército, é adorado pelo povo e possui a legitimidade para se tornar imperador. Digo teoricamente porque o desenvolvimento desse é extremamente precário, resultando em uma incoerência gravíssima. O Napoleão que perambula pelo palácio até encontrar sua esposa no quarto não é o mesmo líder que comanda o exército na Batalha de Austerlitz. Sua ascensão e transição até se tornar imperador surgem de maneira abrupta. Até mesmo a construção de um Napoleão que é aclamado pelo povo é feita de maneira pobre, com um ou outro personagem afirmando coisas como “você é o César da França”, sem que esse sentimento seja genuinamente transmitido em tela. Um indicativo claro desse desenvolvimento frágil é o discurso breve e pouco inspirador que ele faz para convencer o exército a lutar por ele ao retornar do exílio em Elba.
“Napoleão”, então destaca-se especialmente pelas cenas de batalhas, concebidas com maestria pelo diretor, que verdadeiramente cria um espetáculo visual impressionante. O filme aborda algumas das batalhas mais marcantes da vida de Napoleão, incluindo o Cerco de Toulon (1793), o 13 Vendémiaire, a Batalha das Pirâmides, a Batalha de Austerlitz e a Batalha de Waterloo. Essas cenas de combate são apresentadas com um senso de espetáculo que ecoa a grandiosidade vista em outros épicos dirigidos por Ridley Scott, como “Gladiador” e “Cruzadas”. A estética do filme mantém uma semelhança marcante com o estilo visual característico de Scott.
Ao escapar do convencional, ainda que não de forma integral, e ao tentar desenvolver uma representação diferente de Napoleão, com foco em seu relacionamento com Josephine, o filme atinge sua maior força dramática. Contudo, a falta de uma coesão mais robusta entre as alternâncias narrativas certamente prejudica a obra. As cenas-chave parecem ser inseridas apenas como passagens, servindo quase como um “fan service” para os historiadores, o que se torna irônico diante das polêmicas que cercam o filme. Ridley Scott, longe de ser o mesmo de Alien e Blade Runner, ainda assim, aos 85 anos, mostra ainda grande competência artística.
Filme: Napoleão / Napoleon Direção: Ridley Scott Roteiro: David Scarpa Produção: Estados Unidos / Inglaterra / Malta Ano: 2023 Gênero: Drama, Guerra, Histórico Sinopse: Um olhar pessoal sobre as origens do líder militar francês e a ascensão rápida e implacável ao imperador, visto através do prisma do relacionamento volátil e viciante de Napoleão com sua esposa e um amor verdadeiro, Josephine. Classificação: 16 Distribuidor: Columbia Pictures Streaming: Indisponível Nota: 6,0 |