CRÍTICA – O TERRITÓRIO

CRÍTICA – O TERRITÓRIO

Um documentário só por sê-lo, qualquer que seja, encontra monobloco geral alguma resistência. É como se o documentário fosse a afirmação de que a realidade que compartilhamos e conhecemos já anunciasse um trágico fim. É quase como se o processo de “segregação dos espaços”,  descrito por A. Michotte, não se concretizasse nas camadas mais íntimas. Afinal, mesmo que com intervenções, é uma realidade não inventada que se apresenta ali. Curiosamente, quanto mais urgente o assunto, há também uma proporcional resistência que talvez seja sustentada pela certeza de que não nos moveremos a temporada evitar a tragédia que se anuncia na tela e, a cada segundo que a assistimos, se reproduz fora dela. 

É muito mais intenso do que o descrito. Especialmente quando se trata da injusta e solitária guerra que o Estado Brasileiro trava contra os povos indígenas/nativos/originários desde 1500. Embora, como toda guerra, essa também varie em intensidade, o fato é que nunca cessa. O Estado e a sociedade brasileira nunca  permitiram ou permitiram uma real e profunda trégua.

O filme “O Território”, que foi pré-indicado ao Oscar,  aborda a progressão das invasões  à reserva ambiental sob tutela e propriedade do digníssimo povo indígena Uru-eu-wau-wau durante a pandemia da COVID-19. E, claro, a riqueza de informações e senso de urgência são fatores importantíssimos quando se trata desse tema. Mas o surpreendente é a forma que o filme toma e encontra de envolver o público sem abrir mão da seriedade dos fatos. É uma característica que parece ser de óbvia importância, mas não se realiza em todo documentário justamente por não ser uma manobra simples. 

Filmes documentários em geral têm um compromisso com a relevância de uma história. Não raramente essa relevância se dá pelas implicações socioeconômicas e políticas dos fatos narrados e apresentados em contraposição à narrativa dos vencedores, que compõem a tal hegemonia. Se tratando então de narrativas contra-hegemônicas, muito raramente se utilizam tão bem os mesmos utensílios e mecanismos utilizados nas estruturas das narrativas hegemônicas para contar suas histórias contrárias a essas narrativas e estruturas hegemônicas. Ou seja, “O Território” constrói uma “subalterna subversão” ao elaborar muito bem sua estrutura se utilizando até mesmo de vários vícios da linguagem do cinema hegemônico para, por exemplo, apresentar e desenvolver suas personagens de forma que se percebe a sua progressão continua e capacidade de representação simbólica. Bitate representa a juventude indígena, Ivaneide representa as forças aliadas e os micro-invasores representam os tentáculos no neoliberalismo incontrolável. E tais representações também são conhecidas de forma progressiva e complexa.  

Dessa forma, o roteiro, a montagem e edição de “O Território”, sob a direção de Alex Pritz, nos apresenta personagens capazes de representar também vários vetores da atualidade e sem perder a complexidade que só a mente humana tem individualmente. Sua montagem muito o aproxima do público ao recorrer àquilo que nos é familiar, embora não enfadonho. Explico: o arco narrativo respeita a escalada da tensão que se constrói com base em assuntos internos da comunidade, não nos assuntos externos e já muito conhecidos pelo público. Parece bobagem, mas ter como régua/métrica aquele universo específico gera, em última instância, uma imersão comparável à proporcionada pela ficção. Ocorre então a já citada “segregação dos espaços”. 

Isso não é bom somente por aproximar a “não-ficção” da ficção. Não, o cinema documental não deve nada ao “não-documental”. Mas esse efeito é admirável porque resulta numa maior aproximação do filme com o público que não necessariamente de forma tão automática se prenderia a um documentário. Sendo assim, é prudente pensar que há muito o que se aprender com o formato e estruturas adotados por “O Território” que através das suas escolhas técnicas potencializa uma narrativa que nos leva a vislumbrar um caminho que force a secularmente sonhada trégua. E o caminho se nota no uso de tecnologias de ponta utilizadas para preservar as tecnologias primeiras e sua grandiosidade presente em Bitaté Uru-eu-wau-wau, nossas ancestrais e crianças.  


Filme: O Território
Elenco: Bitaté Uru-eu-wau-wau, Neidinha Bandeira
Direção: Alex Pritz
Roteiro: Alex Pritz
Produção: Brasil, Estados Unidos, Dinamarca
Ano: 2022
Gênero: Documentário
Sinopse: O TERRITÓRIO fornece um olhar imersivo no terreno sobre a luta incansável do povo indígena Uru-eu-wau-wau contra o desmatamento invasor trazido por agricultores e colonos ilegais na Amazônia brasileira.
Classificação: 12 Anos
Distribuidor: O2 Play
Streaming: Disney Plus
Nota: 10

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