47ª MOSTRA SP – O BARULHO DA NOITE

47ª MOSTRA SP – O BARULHO DA NOITE

São incontáveis as produções audiovisuais brasileiras e internacionais que retratam a Amazônia. Por outro lado, o cinema propriamente do Norte do país nunca teve tanto destaque como tem tido nos últimos anos. De A Flor do Buriti, que estreou em Cannes, ao grande vencedor de Gramado, Noites Alienígenas, e passando pelo tocantinense O Território, produzido por Darren Aronofsky e que bateu na trave para ser indicado ao Oscar, o cinema da região começa a ganhar e viver uma de suas melhores fases. É de Tocantins, por sinal, que vem um outro filme incrível que integra essa lista de ótimas produções – o excelente O Barulho da Noite.

A história se passa numa região interiorana do estado, onde acompanhamos o casal Sônia (Emanuelle Araújo) e Agenor (Marcos Palmeira) vivendo uma vida simples e bucólica com suas duas filhas, Maria Luíza (a mais velha, com sete anos) e Ritinha. A vida das crianças é regada por brincadeiras com o pai e sorrisos que compõem uma infância feliz. Todo o primeiro ato é focado em fazer essa introdução com paciência para assim percebemos que em meio a todo esse conforto e uma estrutura familiar saudável existe algo de errado. Fica perceptível que Sônia silencia muitas dores internas em relação ao seu relacionamento, que parecem não ter muita solução. Neste primeiro momento, a fotografia faz um ótimo trabalho de ambientação. Focando em planos amplos que mostram a casa “no meio do nada”, rodeada por matos e sem vizinhos e constrói, através da imagem, o sentimento de solidão e isolamento de Sônia.

A atriz Emanuelle Araújo se aprofunda de forma brilhante nesses sentimentos e dá vida a essa personagem cheia de nuances. Na verdade, toda a direção de elenco é espetacular, com destaque também para Alícia Santana e Anna Alice Dias, que interpretam as filhas do casal, e entregam cenas com um peso dramático gigante e impressionam pela profundidade que transpõem esses sentimentos para a tela.

Retomando para a trama, ainda que esteja numa situação confortavelmente incômoda, nada parece ameaçar ou abalar a família, até que Agenor começa os preparativos para sua ida anual à Folia do Divino Espírito Santo. Desta vez, ele deixará sua esposa e filhas aos cuidados e auxílio de seu sobrinho Athayde (Patrick Sampaio), que não o via desde que o rapaz tinha 3 anos de idade. A partir daqui, O Barulho da Noite assume como o ponto de vista o de Maria Luíza, que pressagia a ruína da família.

As risadas e brincadeiras ora tão presentes no cotidiano são substituídas por um sentimento de angústia e tristeza. Assistir essa derrocada a partir dos olhos inocentes de uma criança é devastador e ao mesmo tempo interessante. O que também justifica, por conta da ótica infantil dicotômica, algumas escolhas que poderiam ser problemáticas de um outro ponto de vista. Como a vilanização da mãe, que encontra nos contornos dos músculos e das costas de Athayde uma válvula de escape. Tal qual a criança, não sabemos ao certo o que Sônia sente e o que levou ela a trair Agenor. 

A visão da criança começa a se manifestar também em como O Barulho da Noite é filmado. Percebemos que Athayde nunca aparece por inteiro. Apenas escutamos sua voz, outras vezes vemos o seu rosto incompleto, uma parte do seu corpo e outras vezes somente na ação que ele executa. Pegando emprestado referências do cinema de monstro (Alien: O Oitavo Passageiro, Tubarão, Jurassic Park e etc.), onde a “criatura” quase nunca aparece por completo, o que consolida “o que é” o amante aos olhos da pequena. É como se a câmera não conseguisse encará-lo, igual Maria Luíza, e fica trêmula diante dele, se colocando também numa posição de oprimida e cabisbaixa.

Estreante na direção e roteiro, Eva Pereira nos entrega uma linguagem rebuscada e um filme que ficará com você por muito tempo, principalmente por tocar em feridas abertas da sociedade e por discutir temas muito delicados e difíceis de transpor para tela com a sensibilidade que eles pedem. O Barulho da Noite lembra bastante o trabalho de Jonathan Glazer em outro filme assistido na 47ª Mostra de São Paulo, Zona de Interesse, ao focar, não nas ações e nos horrores do que está sendo abordado diretamente, mas, sim, no que não está em tela e não está sendo falado. É sobre o que é internalizado, que se manifesta como um ruído – um barulho – audível apenas por quem sofre ou sofreu, que atrapalha o sono e consequentemente destrói sonhos. Sonhos de uma criança que tem a infância sequestrada. Faz todo sentido, então, que o longa trabalhe com diversas pontas soltas e não responda muitos questionamentos, o que cria sensação de incompletude e aumenta ainda mais a angústia.

O Barulho da Noite não é uma produção fácil de assistir, é pesado, e pode não agradar a todos, o que está tudo bem. Mas a mensagem é clara e precisa ser dita da maneira correta. Nos minutos finais, Eva Pereira termina o seu filme trazendo a triste realidade abordada para a sala de cinema de forma literal, com todas as letras e números. É muito potente o que Eva Pereira fez aqui; o que marca uma das estreias mais marcantes dos últimos anos.


O Barulho da Noite - Poster Filme: O Barulho da Noite
Elenco: Emanuelle Araújo, Marcos Palmeira, Patrick Sampaio, Tonico Pereira, Alícia Santana e Anna Alice Dias
Direção: Eva Pereira
Roteiro: Eva Pereira
Produção: Brasil
Ano: 2023
Gênero: Drama
Sinopse: Maria Luíza (7), terá a infância roubada ao descobrir o segredo que pode acabar com a sua família. A leveza e alegria da criança cederão espaço ao olhar triste e atento pelo qual acompanharemos tudo se desfazer pelo desencontro de sonhos do casal e a chegada anunciada de um intruso.
Classificação: 18 anos
Distribuidor: Lira Filmes
Streaming: Indisponível
Nota: 9,0

 

*Filme assistido na 47ª Mostra Internacional de Cinema em São Paulo*

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