Prédio Vazio, dirigido por Rodrigo Aragão, nos leva ao carnaval de Guarapari, quando a mãe (Rejane Arruda) de Luna (Lorena Corrêa) desaparece. Após saber disso, a garota se junta ao seu namorado Fábio (Caio Richards) e ambos partem em uma jornada para tentar encontrar a mulher desaparecida.
Rodrigo Aragão e José Mojica Marins
O discípulo de José Mojica Marins ataca novamente: Rodrigo Aragão. Um nome proeminente do terror nacional contemporâneo, e que compartilha com o finado mestre Mojica mais similaridades do que apenas a careca lustrosa. Existem dois pontos basais de aproximação e distanciamento entre a forma cinematográfica dos dois cineastas. O primeiro ponto é uma questão de construção do mundo, que revela nos dois nomes uma visão muito pura e forte sobre a constituição do mal. O segundo, se mostra como uma divergência no modo com o qual ambos os diretores lidam com a questão anterior. É como se Aragão e Mojica percorressem juntos o mesmo caminho sombrio à noite, porém, ao chegarem na encruzilhada do cemitério, cada um seguisse para uma direção diferente.
Antes de corrermos para as trincheiras dos pensamentos profanos de duas mentes criativas, é necessário levantar uma questão: este é um texto sobre Prédio Vazio ou sobre dois nomes da história cinematográfica brasileira? Bem, as duas coisas! A reverência por Mojica é perceptível ao longo da carreira de Aragão – ao menos nos filmes que eu vi –, então não é exclusividade do longa em questão. Contudo, Prédio Vazio talvez seja um dos momentos onde o diretor deixa mais claro tanto a aproximação quanto o distanciamento entre ele e o diretor do Cinema Marginal. Algo que está intimamente emaranhado no cerne do filme de Aragão. Desse modo, é quase impossível falar sobre um sem falar sobre o outro.
O mal no mundo de Prédio Vazio
Assim como Mojica, Aragão tem muita fé no mal. É uma crença vital, que move o filme e o mundo. Para ele(s) o mal não existe em decorrência de algo, não existe com justificativas ou predisposições. O mal existe como um elemento constituinte e primitivo do mundo. O perverso vive apenas por ser perverso. Não há nada mais assustador que isso. Uma malevolência que existe somente com a intenção de fazer mal. Nessa ótica, é uma perversidade natural, que existe desde que o mundo é mundo. As coisas não são maléficas por motivações exacerbadas, são maléficas puramente pela natureza do mal. Não é necessário uma dramatização ou uma “metáfora espertinha” sobre ele. Ele apenas está ali, como um elemento que assombra o nosso mundo. O mal existe, e existe para lhe fazer mal.
No caso da antagonista de Prédio Vazio até há uma motivação para a crueldade, mas ao analisarmos essa justificativa, retornamos ao mal primitivo. Leve spoiler à frente, se não quiser ler pule ao próximo parágrafo. A mulher (interpretada por Gilda Nomacce) mata para manter o espírito de sua filha alimentado. Contudo, em primeira instância, a filha só morreu porque a mulher já era maléfica enquanto a garota vivia. Isto é, a garota cometeu suicídio por temer sua mãe.
O modo com o qual Aragão salienta esse mal dentro do seu mundo é extremamente interessante. O diretor limita-o a um espaço geográfico (o prédio) e, a partir disso, constrói um ambiente muito pesado dentro desse local. Seja através das cores – o verde das paredes, o vermelho do elevador, o rosa das luzes –, dos planos holandeses ou dos fantasmas desfocados no canto do quadro, a atmosfera é sempre caótica e opressora. O prédio não somente prende os personagens como os engole, jogando-os em um trato digestivo onde o esôfago é o medo do desconhecido, o estômago é a paranoia e o intestino é a perversidade encarada cara a cara.
Profano e divino
Nesse sentido, é uma crença que acaba vindo junto com a crença no divino. O divino e o profano são contrapostos indissociáveis; são carne e unha. Esse mal primordial, um mal primitivo que reside na própria constituição da existência, só é possível como antônimo ao divino. Se o mal elementar existe, então o bem também. Se pegarmos o pensamento de Agostinho de Hipona (ou, Santo Agostinho), o mal é privatio boni. Em outras palavras, é uma presença real no mundo, que surge onde há corrupção ou ausência do bem. Assim como a escuridão é a falta de luz, o mal é a falta de bondade. Ou seja, o mal elementar e profano com o qual Aragão e Mojica trabalham é uma consequência direta da existência (e ausência) do bem divino.
Por conseguinte, é uma ótica que abre margem para a utilização de atributos visuais divinos como evidências para esse mal. Prédio Vazio é repleto de cruzes, velas, livros místicos, rituais, e por aí vai. Elementos que partem de uma crença cristã, mas subvertidos para o mal. Dois lados de uma mesma moeda. Tropos do gênero que sempre existiram no cinema, mas que nessas obras são exagerados como contraponto à ausência do divino. Assim, é uma questão visual que conversa diretamente com um certo folclore brasileiro. Em um país onde a maior parte de sua população é católica, colocar em câmera a perversidade que existe como consequência dessa crença é amedrontador.
Relação com o público
Esse tipo de filme, que encara o mal de um modo muito primitivo e frontal, históricamente é um subgênero usualmente renegado ao baixo orçamento. Os famosos “Filmes B”. Olhando superficialmente, parece indicar uma predileção do público por filmes mais “complexos” dramaticamente, com mais nuances e ambiguidades — e menos terror, puramente dito. Porém, uma análise mais aprofundada talvez indique um motivo mais honesto para essa predileção: o mal elementar é muito mais assustador.
Se você se depara com um filme onde o mal é consequência de algo e é motivado por um objetivo específico, é muito fácil distanciar isso da própria realidade. Afinal, para aquilo lhe atingir você precisaria do mesmo contexto. Por outro lado, o mal do filme de Aragão, aquele que existe apenas por existir, é muito mais próximo da realidade material do espectador. Você não precisa de uma contextualização para sofrer os malefícios, apenas precisa existir. Se o mal é parte elementar do seu mundo, e age apenas com a intenção de ser maléfico e corromper a bondade, ele pode lhe atingir a qualquer momento. E isso é muito mais assustador.
Independente do motivo por trás da predileção pública, o baixo orçamento dessas obras criou uma espécie de estilização visual própria delas. Inegavelmente, Aragão entende isso e abraça bem essa linguagem B. Por exemplo, CGI artificial e falso, efeitos práticos exagerados, caracterização escrachada e absurda, etc. Pontos que ajudaram a compor a definição desse subgênero e que Prédio Vazio sabe se apropriar para construir planos e imagens tão lindos quanto assustadores.
A encarnação do mal em Prédio Vazio
Adentramos, então, o ponto de divergência entre Aragão e Mojica: o modo como essa malevolência se encarna no mundo físico. Na maior parte dos filmes de Mojica, o mal estava concentrado em um personagem, o protagonista Zé do Caixão. Por outro lado, em Prédio Vazio os protagonistas não são a origem da desgraça, são as vítimas. Ou seja, o mal está nos elementos ao seu redor. Assim, barbárie habita nos fantasmas, nas outras pessoas, nas paredes do edifício assombrado, no poço do elevador. Se Mojica nos convidava à acompanhar a maneira com a qual o mal age dentro do mundo, Aragão nos chama para encarar as consequências dele.
Escolha essa que é justamente o fator que permite com que Aragão explore figuras sobrenaturais com mais intensidade; no caso de Prédio Vazio, os fantasmas. Considerá-los como encarnações metafísicas do profano acolhe a possibilidade de utilizá-los com mais intensidade dentro do plano. Assumem assim, não somente um visual cativante e assustador (e exagerado na lógica de filme B), mas também a alcunha de serem a maior origem do medo. Utilizados e abusados pela câmera para arrepiar os pelos do espectador. Há, inclusive, um momento extremamente simbólico (e extremamente bem pensado) disso: uma cena que envolve a constatação de que fantasmas só podem ser encarados com a visão periférica.
Terror fantástico no cinema nacional
Em suma, Prédio Vazio parte tanto de um contexto histórico do subgênero quanto do trajeto dele dentro do cinema nacional para desenvolver um horror que dialoga direto com o imaginário e folclore religioso brasileiro. Uma obra paralelamente escrachada e realista. Uma ameaça que poderia facilmente ser real, com um visual quase caricato, que exagera os pontos assustadores dela. Em determinado momento, a personagem de Gilda Nomacce diz uma frase que resume muito bem o filme: “tem alguma coisa de fantástico e lindo aqui”.
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Filme: Prédio Vazio Elenco: Gilda Nomacce, Rejane Arruda, Lorena Corrêa, Caio Richards, Telma Lopes, Walter Filho, Leonardo Magalhães Direção: Rodrigo Aragão Roteiro: Rodrigo Aragão Produção: Brasil Ano: 2025 Gênero: Terror Sinopse: Luna e seu namorado Fábio partem em uma jornada para encontrar sua mãe desaparecida. Classificação: 16 anos Distribuidor: Retrato Filmes LTDA Streaming: Não disponível Nota: 8,0 |