CRÍTICA – SEGUNDO TEMPO

CRÍTICA – SEGUNDO TEMPO

“Uma ocasião,

meu pai pintou a casa toda

de alaranjado brilhante.

Por muito tempo moramos numa casa,

como ele mesmo dizia,

constantemente amanhecendo.”

 

-Adélia Prado, “Impressionista”.

 

A cena inicial abre em uma partida de futebol de rua em um bairro de São Paulo. A montagem acelerada ao passo dos dribles e jogadas é ritmada pela bateria frenética da trilha sonora de Jazz que acompanha o filme. De repente o jogo é interrompido por um idoso alemão, o pai de Carl. O jovem adulto, envolvido no jogo, se esqueceu de levar o velho a um exame médico. Fim do primeiro tempo. O segundo tempo no futebol é o momento de reorganização do time e de reavaliar as táticas para definir o jogo. Segundo tempo é um filme sobre luto.

O filme, que estreia em 16 de março nos cinemas, foi exibido em 2019 no Festival do Rio e realizado antes da pandemia. Ainda assim, antecipa um tema muito comum a realidade pandêmica de muitas famílias, como a perda de entes queridos, especialmente da terceira idade. Aqui, porém, não se tratam de fatores externos como uma epidemia ou o desamparo do poder público. O peso da perda e da culpa cai sobre os ombros daqueles que ficaram para refletir sobre seus erros e ausências para com o parente em vida. 

A narrativa acompanha a conflituosa jornada dos irmãos Carl e Ana através do luto e dos mistérios que envolviam a vida do pai. Carl é desatento, frequentemente se esquece de tudo e passa a maior parte do tempo jogando bola. Ele ganha a vida se prostituindo à noite pelas ruas de São Paulo, escondido da família. Após a morte, reflete sobre as expectativas do pai quanto a sua busca por emprego e sente culpa pelo atraso para levá-lo ao médico, antes da piora da sua condição. Esses sentimentos desencadeiam uma obsessão pelos segredos ocultos dos quais ambos os filhos nunca se interessaram em perguntar a respeito. Ana, por sua vez, era mais próxima do velho, mas ainda assim desconhecia os detalhes de sua vida. Ela se interessa pela leitura e passa seu tempo na biblioteca. No leito de morte, lia para o enfermo a poesia de Adélia Prado. Sua reação à morte é o início de um longo e isolado episódio depressivo, marcado por um desinteresse pela busca obsessiva de seu irmão.

Segundo Tempo acompanha as trajetórias subjetivas dos irmãos desconectados um do outro com uma trilha de jazz e câmera na mão, típico do cinema independente. Ana, em seus melancólicos passeios em silêncio pela vida noturna das esquinas paulistanas, se torna objeto de meditação do filme sobre o luto. Sua solidão e apatia marcada por ruínas e escuridão destoam completamente da turbulenta investigação de seu irmão que mal consegue dormir. As aventuras diurnas dele são repletas de entrevistas a conhecidos, ajuda de estranhos e visitas de memórias e objetos antigos de seu pai. Nessa procura por respostas, Carl encontra uma quantia de dinheiro e as pistas deixadas apontam para a cidade natal do patriarca na Alemanha. Com a soma necessária para a viagem, os dois partem rumo a Frankfurt, com destino às respostas ocultas e a eventual conciliação entre irmãos.

Essa segunda parte apresenta o núcleo alemão da produção, marcada por pontos turísticos e traduções simultâneas dos atores estrangeiros. Aqui se replicam os signos da vida em São Paulo. Carl recorre a prostituição para obter dinheiro. Ana continua vagando como um espírito pela melancolia urbana. Em determinado momento, na biblioteca de Frankfurt, referencia o famoso travelling do anjo de Asas do Desejo (Der Himmel über Berlin, 1987), que, assim como ela, navega uma solidão invisível. Mas eventualmente, entre conflitos, discussões e descobertas reveladoras, são capazes de acessar o afeto um pelo outro. Atravessando na Alemanha a barreira da linguagem com o apelo universal da poesia e do futebol, encontram o amor fraterno e a solução pessoal para as suas questões familiares.

A obra de Rewald, apesar de tocar em temas profundos e alcançar os sentimentos de luto de suas personagens bem caracterizadas, sofre algumas limitações. As convenções narrativas que facilitam a jornada dos protagonistas de forma inverossímil incomodam com frequência a experiência do espectador de um filme que se propõe ao realismo. Toda a trajetória de descobertas e desfechos acontece quase sem obstáculos e repleta de coincidências convenientes. Alguns diálogos e atitudes são bastante destoantes e irrealistas no contexto de um filme sério, mesmo com seus breves momentos cômicos. Além de inúmeros pontos narrativos que são abandonados e não concluídos ao longo da duração de Segundo Tempo.

As imperfeições técnicas e problemas de roteiro podem tumultuar a experiência do filme, mas a execução de sua temática tão própria da experiência humana é suficientemente cativante e reconhecível. A conclusão das questões de suas personagens é madura e poderosa ao favorecer o amadurecimento dos irmãos, ao invés das respostas para uma busca pela verdade e pelo passado. No fim, as reações dos protagonistas são emoções verdadeiras e humanas, e seu caminho até a conexão familiar é um gesto que se faz merecido pela narrativa. O apito final nos traz de volta ao futebol de rua. Retornam para o segundo tempo, jogadores mais amadurecidos, cooperativos e prontos para definir a partida.

 

Filme: Segundo Tempo
Elenco: Kauê Telloni, Priscila Steinman, Michael Hanemann, Laura Landauer e Jochen Stern
Direção: Rubens Rewald
Roteiro: Rubens Rewald
Produção: Brasil / Alemanha
Ano: 2019
Gênero: Drama
Sinopse: ​Ana e Carl, dois jovens irmãos que nunca se deram bem, estão em busca de respostas depois de sofrerem uma grande perda familiar. Os dois tentam encontrar, no Brasil e na Alemanha, seus próprios caminhos e identidades, atravessando a história de sua família e do século XX.​
Classificação: 14 anos
Distribuidor: Pandora Filmes
Streaming: Indisponível
Nota: 6,0

*Estreia nos cinemas no dia 16 de março de 2023*

 

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