CRÍTICA – SEM URSOS

CRÍTICA – SEM URSOS

Deve ser nítido que “qualquer canto é menor do que a vida de qualquer pessoa”. Quer dizer, qualquer obra artística é infinitamente menos valiosa do que a vida humana. No entanto, não necessariamente é menos poderosa. Dentro de uma condição politicamente autoritária, as obras se tornam inexplicavelmente expressivas. Podem apresentar de forma concisa ideias  inquietantes porque comuns. Mas, não importa o quão acolhidas tais ideias sejam, nada concede a uma obra poder suficiente para vencer seu/nosso algoz. 

O filme “Sem Ursos” do diretor Jafar Panahi  é um filme que nos provoca alguns deslocamentos que preservam as essencialidades. Podemos pensar mesmo a partir do início dele: o filme que vemos só existe dentro do filme que veremos e, embora se passem em lugares diferentes, há algo muito forte que os liga. Essa ponte é a sobrevivência em meio ao autoritarismo. O diretor está longe das câmeras, longe da sua equipe, por ordens do seu Governo que o impede de sair do país na mesma medida que o impede de trabalhar. O diretor, num ato de fé, entrega uma câmera ao seu empregado e logo descobre o que a cidade está pensando. Assim, sem querer ele os espiona. Mesmo que não haja nenhuma similaridade entre o poder exercido por um Governo autoritário e o exercido por uma pessoa dentro da micropolítica, “Sem Ursos” provoca já de início essa inquietação, esse mistério.

Sim, mistério porque é o que denomina o espaço entre o vago e a compreensão. No filme, algumas coisas só ganham destaque na hora certa, em seguida seguimos a procissão. Ou seja,o diretor, roteirista e produtor Jafar Panahi nos guia para determinada cena por uma razão, nela descobrimos um outro sentido quando há uma revelação. Depois tudo volta ao seu ritmo ordinário por um tempo e  quando menos esperamos, outra mensagem mais ou menos explícita em direção a alguma manifestação contrária ao autoritarismo. É assim o filme inteiro. Tais manifestações são sutis como o humor cheio de cordialidade das personagens apresentadas que parecem ser fidedignas ao comportamento de parte significativa da sociedade iraniana. Em determinadas condições, a cordialidade e condescendência podem ser tão perigosas quanto o berro. É no balanço entre essas duas forças motrizes que se constrói o filme. Irônico, assertivo e, embora sem parecer, conciso. 

“Sem Ursos” é um filme com roteiro absolutamente genial. Em meio ao que parecem ser distrações, surgem coisas importantíssimas, como já disse. Muitas delas podem ser percebidas como analogia à situação enfrentada pelo próprio filme enquanto obra diante de um regime político autoritário, que é, não por coincidência, o que o próprio filme retrata. Uma dessas aparentes distrações é uma foto que o diretor teria tirado. Tal foto teria sido uma entre tantas, mas por algum motivo sobre ela é depositado um poder inusitado pelo simples fato dela possivelmente retratar um desencontro de alguém com uma ordem ou tradição com a qual não concorda. Uma imagem que talvez nem sequer exista ganha um poder vexaminoso. E o mais revelador: cabe ao artista revelá-la, criá-la ou silenciá-la. 

O que é documental dentro da ficção? O que é ficção dentro do filme baseado em fatos reais? São linhas que o filme “Sem Ursos” ultrapassa. São vários os desafios que o filme superou, na verdade. Se destaca a descoberta  da forma de descrever a situação como real dentro da narrativa ficcional sem apelar para verborragia. Os dois filmes que estão  dentro de um só são bem divididos e espaçados. O drama vivenciado na sociedade é refletido no filme, mas também é recortado, repartido, de forma que esquecemos o fardo que cada uma das personagens carrega. É bem cotidiano, imersão no real. Levar-nos, através de um filme, a nos comportar e percebermos da mesma forma que só fazemos no mais íntimo da nossa vida, é uma glória alcançada pelo diretor Jafar Panahi. O filme nos guia e engana como enganamos a nós mesmos e como as próprias personagens parecem se enganar. Pode parecer farto de ser ordinário, mas tudo recebe um tratamento dos mais delicados possíveis. Afinal, só com muita destreza é possível concomitantemente retratar e transcender a sofrida realidade.


Filme: Khers nist (Sem Ursos)
Elenco: Jafar Panahi, Naser Hashemi, Vahid Mobaseri, Bakhtiar Panjei, Mina Kavani
Direção: Jafar Panahi
Roteiro: Jafar Panahi
Produção: Irã
Ano: 2022
Gênero: Drama
Sinopse: Duas histórias contadas simultaneamente. Em ambas, os amantes são afetados por obstáculos e impeditivos. Vencedor do Prêmio Especial do Júri do Festival de Veneza, em 2022, o filme é dirigido e estrelado por Jafar Panahi, que interpreta uma versão fictícia de si mesmo, Na história, ele é transferido para uma cidade rural para dirigir um novo filme. Enquanto luta para concluir a produção, Panahi se vê envolvido em um escândalo local.
Classificação: 14 Anos
DistribuidorImovision
Streaming: Indisponível
Nota: 7,0

*Estreia nos cinemas no dia 11 de maio de 2023*

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