CRÍTICA | DANÇANDO NO SILÊNCIO

CRÍTICA | DANÇANDO NO SILÊNCIO

Dança e política como pano de fundo

Dançando no Silêncio” é o segundo filme de ficção da diretora franco-algeriana Mounia Meddour, que antes se especializava em documentários. Ele acompanha Houria, uma bailarina clássica que treina duramente para ser selecionada para o ballet nacional da Algéria. Por falta de salários decentes, Houria, além de trabalhar em um hotel, também aposta em lutas de animais. Após alguns acontecimentos traumáticos, ela precisa reencontrar seu caminho. 

O filme se passa cerca de duas décadas após o fim da guerra civil da Algéria. Isso se torna um contexto importante para a história de Houria (mais sobre isso abaixo). 

 

A dança como expressão transcendental

Sou nerd sobre muitas coisas, como minhas resenhas anteriores comprovam, e trago mais uma coisa aqui: ballet. Mesmo sem trilha sonora, eu já sabia para qual ballet Houria estava ensaiando nos primeiros minutos de filme. 

A dança e o movimento em “Dançando no Silêncio” são tratados como no teatro musical, como uma continuação da fala quando as palavras não conseguem mais expressar o que é preciso dizer. No contexto do filme, isso é especialmente importante após o trauma de Houria e quando ela encontra apoio em um grupo de mulheres que também passou por situações traumáticas. Quase ao final do filme, temos uma cena de dança que compete com qualquer filme musical em termos de força, mensagem, presença – e olha que eu sou apaixonada por filmes musicais (sim, mesmo La La Land). 

Aqui, a dança liberta. Cura. Cria. Constrói. E isso é verdade com todas as expressões artísticas, na minha opinião. 

 

A guerra civil da Argélia

O outro ponto presente na história de Houria é a sombra da guerra civil. A guerra civil ocorreu entre 1991 e 2002, entre o governo algeriano e radicais islâmicos que queriam endurecer as leis do país de acordo com uma leitura fundamentalista da sharia.  Nessa mais de uma década de conflito, os radicais islâmicos se dividiram em subgrupos que brigavam entre si, houveram eleições sem confiança internacional, enfim, foi um momento muito sangrento para a população civil do país. Estima-se que até 200.000 foram mortos durante o conflito.

Uma coisa que ainda é uma ferida aberta para a população da Argélia foi a anistia dos grupos considerados terroristas. Famílias daqueles que perderam pessoas foram forçadas a aceitar esse perdão coletivo. E o medo da influência dessas pessoas nas instituições perdura até hoje, como mostrado no filme. Situação evoca memórias, não é mesmo? 

 

Desdobramentos atuais

Condições sociais desfavoráveis foram um dos estopins da guerra. Em “Dançando no Silêncio”, apesar da situação não ser tão ruim quanto antes da guerra, isso não está resolvido, e as personagens ainda têm dificuldade em arranjar empregos com o mínimos de qualidade de vida. 

Isso faz com que uma das personagens busque uma mudança de vida indo para a Europa via um coiote, já que não conseguiu um visto ou passaporte. Isso abre também uma outra questão: após 132 de colonização francesa na Algéria, poderíamos questionar a falta de ação por parte dos franceses em falar sobre reparações ao povo argelino. 

No entanto, com esse contexto dado, aqui vem minha primeira crítica ao filme: apesar de levantarem essas bandeiras da guerra civil, da ferida aberta da anistia, da colonização e falta de oportunidades atuais, sãos portas que abrem mas não levam muito a lugar nenhum. Se a pessoa não tem todo o contexto histórico acima (por isso que dei palestrinha aqui, pra variar, me perdoem!), pode ficar muito perdida. 

 

A produção

O primeiro filme de ficção de Meddour, “Papicha”, lida mais profundamente com a guerra civil da Argélia. Desta vez, Meddour traz poesia e liricismo para a geração que veio depois, com uma direção firme e intimista.  Meddour também explora com maestria diversas faces da Argélia, em termos de locação mesmo, ajudando a construir o mundo de Houria com mais propriedade na mente de quem assiste.

O motor do filme está mesmo é na performance eletrizante de Lyna Khoudri, que consegue equilibrar situações e sentimentos complexos com convicção, além de ter um estudo de movimento sensível e eletrizante para o filme. Khoudri chegou a ganhar o César de Melhor Atriz Revelação (o “Oscar” francês), por sua participação em Papicha. Ela também atuou no filme mais recente de Wes Anderson (“A Crônica Francesa“)

Um dado de curiosidade é que o filme contou com produção executiva de Troy Kotsur, ator querídissmo que ganhou o Oscar de melhor ator coadjuvante por “No Ritmo do Coração“.

Considerações finais

“Dançando no Silêncio” é uma jornada belíssima sobre reencontrar a si mesmo, redescobrir sua paixão por um ângulo novo, superar novas barreiras e limitações, aprender a lidar com as perdas pelo caminho da vida, tudo enquanto vivendo em um país que aparenta não facilitar a existência do cidadão médio. 

Minha crítica maior é a que mencionei ali em cima. O uso de boa parte do filme para criarem a questão da anistia dos terroristas da guerra civil parece um desperdício de oportunidade. Um nada, e não daqueles que parece fazer sentido ser nada. Por fim, não curti muito a tradução do nome do filme em português. Sinto que já entrega e mastiga muito as ideias do filme. Acho que talvez até dê a entender que o filme foca na dança quando, na verdade, o coração pulsante da história é, a todo momento, a Houira.

É um filme que pode ressoar muito dentro de qualquer pessoa que já passou por uma situação de ter que se reestruturar de alguma forma. Eu sei que foi assim para mim.

Dançando no SIlêncio Poster Filme: Houria (Dançando no Silêncio)
Elenco: Lyna Khoudri, Francis Nijim, Rachida Brakni, Salim Kissari, Amira Hilda Douaouda, Ali Damiche, Marwan Fare
Direção: Mounia Meddour
Roteiro: Mounia Meddour
Produção: Argélia, França
Ano: 2023
Gênero: Drama, Ficção
Sinopse: “Uma jovem apaixonada por balé passa por um trauma, conhece outras mulheres que passaram por situações semelhantes e encontram uma forma criativa de perseguir sua paixão” (Sinopse Oficial, Pandora Filmes)
Classificação: 14 anos
Distribuidor: Pandora Filmes
Streaming: Indisponível
Nota: 8,5

**O filme estreia HOJE, 04 de maio, nas salas de cinema do Brasil**

Para saber a sala de exibição mais próxima, acessa a página da Pandora Filmes aqui.

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