A HBO já é notoriamente conhecida pelas suas produções de altíssima qualidade. Mas, na minha memória recente, nada supera a sequência de séries que figuraram no seu horário nobre do final de 2022 até o início de 2023: A Casa do Dragão, The White Lotus, The Last Of Us (série que resgatou momentaneamente a essência do “dominGOT”) e a última temporada icônica de Succession (uma das melhores séries da história). Ou seja, a barra era muito alta, mas dada as credenciais de qualidade da emissora, dificilmente teríamos algo aquém. Ao menos era isso o que eu e muita gente achava até assistir The Idol, nova série de Sam Levinson (Euphoria) em parceria com Abel Tesfaye – o The Weeknd –, que foi até Cannes passar vergonha.
As impressões depois da exibição dos três primeiros episódios em uma premiere luxuosa pôs luz a uma bandeira vermelha que estava balançando desde quando começaram a vir à tona as polêmicas e o cenário caótico nos bastidores de The Idol. Primeiro foi a demissão da diretora Amy Seimetz com o projeto praticamente concluído. A justificativa alegada foi de “diferenças criativas” com os showrunners. De acordo com o Deadline, The Weeknd também estaria insatisfeito com a visão de Seimetz, pelo fato dela ter “focado demais numa perspectiva feminina”. Agora, após assistir a série completa, fico ainda mais em dúvida o que o artista quis inferir com tal afirmação.
Desta forma, para tornar a produção mais a cara dos seus criadores, Sam Levinson assumiu a direção do projeto e com isso vieram diversas regravações, roteiros foram reescritos e consequentemente o orçamento extrapolou.
Qual a história de The Idol?
Aqui acompanhamos Jocelyn (Lily Rose-Depp), uma jovem cantora com uma estrutura familiar problemática se recuperando de um luto enquanto busca recuperar o seu brilho de estrela pop. Não é preciso fazer muito esforço mental para traçar paralelos com outras celebridades como Justin Bieber, Britney Spears, Selena Gomez e por aí vai. Até porque a ideia é essa mesmo: discutir os bastidores destrutivos do showbusiness e da mídia a partir de pontos comuns. Sendo assim, em tempos de #FreeBritney, The Idol soava oportuna e interessante na mesma medida. O problema é que parece que os criadores esqueceram sobre qual era a temática central da série e nos entregam um verdadeiro show de hipocrisia, misoginia e uma visão problemática, que mais parece materializar fetiches do que discutir e se aprofundar em qualquer tema.
Não é preciso mais do que meia hora do primeiro episódio para entender de que está tudo errado e que o que vemos aqui é apenas fetichização. A série abre com um photoshooting sensual de Jocelyn, em que, na medida em que as fotos são tiradas, ela começa a ficar mais a vontade e mostrar “um pouco mais”, até que o ensaio é pausado por um coordenador de intimidade que alegava que no contrato há uma cláusula que impede a cantora de tirar fotos seminuas, por mais que ela queira. Para fins de contextualização, o trabalho do coordenador de intimidade é proteger a intimidade dos envolvidos em filmes/ensaios que tem cenas de sexo ou nudez, para evitar que a pessoa que está ali atuando seja explorada ou pressionada a fazer algo que não queira. Bom, Levinson já demonstrou em filmes passados, como Malcolm & Marie, que gosta de utilizar os seus personagens para expor sua opinião a respeito de algo e aqui ele ridiculariza o trabalho (extremamente necessário) desses profissionais. Além de distorcer por completo o “meu corpo e minhas regras” da forma que ele acha que é.
Praticamente todo o primeiro episódio não sai muito do ensaio e da gravação do novo clipe de Jocelyn. Não há praticamente nenhuma introdução temática, apresentação de personagens e contexto. É tudo vomitado para a audiência, que deve lutar para digerir os diálogos péssimos e uma sequência de imagens cujo único propósito aparenta ser de sexualizar a imagem de Rose-Depp, pois tudo que está ao seu redor serve como ferramenta sexual. Até o seu passado traumático é usado para tal fim – e nunca para se aprofundar nos dramas da personagem. Os figurinos corroboram ainda mais para construir essa imagem com peças exageradamente curtas e apertadas, claramente desconfortáveis (sério, ninguém se veste desse jeito no dia-a-dia). Mas para não falar que é de todo mal, os pequenos acertos da equipe de figurinistas está na utilização de referências dos anos 2000 nos looks artísticos de Joss – e só.
E se tudo no primeiro episódio já era péssimo, The Idol mostra uma virtude de poucas produções: piorar o que já estava ruim. É realmente brilhante como uma simples aparição de um personagem, Tedros (The Weeknd), o protagonista masculino da trama, consegue levar a produção para o fundo do poço. O cantor interpreta esse guru de autoajuda e líder de uma seita de talentosos desafortunados, que começa a se envolver “romanticamente” com Joss após conhecê-la em sua casa de shows. Depois de uma conversa, os dois começam a se envolver. A cena e o diálogo que encerra o episódio e consuma a tensão sexual entre eles é de um mal gosto gigantesco.
O lado obscuro da fama
Este é o ponto de partida de The Idol e do relacionamento tóxico entre os dois. A partir desta ótica, Levinson tenta discutir e criticar o showbusiness e a maneira que a indústria trata os seus artistas. Seria um ponto de vista interessante caso The Idol tivesse focado no importante, pois o que vemos é apenas um amontoado de cenas que degradam e humilham as mulheres, zombando, de certa forma, da opressão e até mesmo banalizando-a. Levinson bate na tecla de que Lily não só precisava viver a toxicidade desse relacionamento como ela não era muito diferente do abusador, o que torna tudo ainda mais (com o perdão da palavra) nojento.
Eu entendo que a arte não serve apenas para contar boas histórias com finais felizes e reviravoltas positivas. Acredito sim que uma de suas funcionalidades é chocar, incomodar e perturbar (vai do gosto de cada um). David Cronenberg e Darren Aronofsky são apenas alguns nomes que utilizam muito bem o audiovisual para causar esses sentimentos, mas até mesmo eles que sabem o que estão fazendo cometem alguns excessos. Em A Baleia, por exemplo, a direção do Aronofsky constantemente entra em conflito com o texto, pois enquanto o roteirista Samuel D. Hunter está falando sobre empatia e perdão, a imagem construída pelo diretor é de pena e penitência. E é exatamente essa falta de sinergia entre imagem, forma e conteúdo o maior câncer de The Idol.
Ao contrário do filme que deu o Oscar para Brendan Fraser, a produção na HBO não consegue equilibrar e se salvar em nenhum momento – são poucas as passagens genuinamente boas da obra (um aceno à conversa entre Chloe e Destiny no quarto episódio). A contradição dos elementos vem exatamente pela temática central: retratar o lado obscuro da fama, a toxicidade do meio e a objetificação feminina. Levinson se transforma exatamente no seu objeto de crítica ao construir dois protagonistas isentos de qualquer profundidade e por constantemente objetificar a sua protagonista. Traçar um paralelo com Blonde, filme problemático de Andrew Dominik sobre a vida de Marilyn Monroe, é praticamente incontornável, pois os dois utilizam o clichê de “mulher amaldiçoada” para as duas personagens cujo o “daddy issues” é único traço de personalidade.
No segundo episódio, o menos pior de toda a série (mas ainda horrível), vemos o peso do luto recaindo sobre Joss enquanto ela tenta gravar uma sequência de dança do seu clipe inúmeras vezes e falhar. Neste pequeno momento vemos uma história não contada e um ótimo trabalho de Rose-Depp, que se esforça para deixar a sua personagem mais tridimensional. Ela chora, alucina, tenta, falha, supera, se machuca e persiste, o que nos mostra o quanto a cantora busca a perfeição, busca ser melhor e conquistar os seus objetivos. É realmente algo raro em The Idol e Levinson, ao invés de aproveitar essa deixa, decide seguir o caminho errado.
The Idol reacende a discussão do “local de fala” e mostra a importância de “saber sobre o que se fala”. Não quer dizer que Levinson não pode escrever histórias que retratam vivências de mulheres. O ponto é que ele deveria saber e entender a maneira correta de discutir determinados assuntos, e não destilar seus fetiches em tela e acreditar que estava tudo bem. Soa até prepotente assumir que a audiência iria comprar o discurso da “sátira sombria”. Em nenhum momento a produção da HBO é esperta o suficiente para funcionar como sátira. A própria linguagem crua mostra que essa nunca foi a intenção de Levinson, e sim o choque pelo choque, a nudez pela nudez, que serve a ninguém mais e ninguém do que a prepotência e os fetiches problemáticos dos seus criadores.
Felizmente, o último episódio da temporada não me deixa mentir, por funcionar como uma síntese de tudo que aconteceu com The Idol na sua pré-produção até o seu lançamento. É incoerente, raso e uma bagunça sem sentido. O roteiro ignora tudo o que havia sido minimamente construído nos capítulos anteriores e se encerra relativizando abusos e humanizando o abusador, vilanizando a vítima, jogando boas oportunidades fora – que poderiam sustentar uma segunda temporada reparadora de danos –, desperdiçando personagens e atores (porque, Rachel Sennott?!), abandonando tramas e acontecimentos que nunca se concluem e desperdiçando uma premissa instigante para contar uma história menos interessante do que os seus bastidores.
Série: The Idol (1ª Temporada) Elenco: Lily Rose-Depp, Abel “The Weeknd” Tesfaye, Rachel Sennott, Jennie, Troye Sivan, Hank Azaria, Eli Roth e Da’Vine Joy Randolph Showrunners: Sam Levinson, Abel “The Weeknd” Tesfaye e Reza Fahim Produção: Estados Unidos Ano: 2023 Gênero: Drama Sinopse: Em The Idol, série desenvolvida por The Weeknd, Reza Fahim e Sam Levinson, a estrela pop Jocelyn (Lily-Rose Depp) está disposta a tudo para alcançar um patamar nunca antes visto em uma celebridade. Após sofrer um colapso nervoso em sua última turnê ela conhece Tedros, um dono de boate com um passado sórdido que se torna seu guru e agente. Seguindo um caminho conturbado dinheiro, sexo e segredos, a cantora se envolve intensamente com o empresário. Cruzando todos os limites, o preço da fama é testado a cada clique. Classificação: 18 anos
Distribuidor: HBO Streaming: HBO Max Nota: 0,5 |
Concordo com tudo que você falou. Sinto que perdi meu tempo assistindo um show de misoginia.