CRÍTICA – A BALEIA

CRÍTICA – A BALEIA

A Baleia (2022) traz a história de Charlie (Brendan Fraser), um professor de literatura recluso, isolado do mundo devido a seu problema com obesidade. Quando enfrenta a possibilidade da morte iminente, decide dedicar seus últimos dias para corrigir seus erros e se redimir com sua filha adolescente (Sadie Sink).

A Baleia (2022) e a filmografia de Aronofsky

É, no mínimo, curioso a maneira como A Baleia (2022) se enquadra na filmografia de Darren Aronofsky. Ao mesmo tempo que sua mais recente obra dialoga diretamente com elementos conteudistas dos quais o cineasta já havia abordado em sua carreira, diferencia-se formalmente da maneira como lidava com tais elementos; pelo menos ao falarmos da parcela mais contemporânea de sua trajetória artística.

Mais de duas décadas atrás, Aronofsky já havia apresentado uma história orientada pelas rédeas das diversas facetas do vício, com Réquiem para um Sonho (2000). Tal obra representou uma abordagem bem frontal com tal questão social, evidenciando rigorosamente as direções pelas quais vidas podem percorrer ao serem guiadas por linhas tecidas pelas mãos do vício e da decadência humana. Uma narrativa sobre a perda do controle.

Assim como, há menos tempo, em Mãe! (2017), o diretor trouxe ao mundo um filme espacialmente contido. Uma obra em que o espaço da qual seus acontecimentos transcorrem não só é limitado a um só local, mas determinado local também apresenta uma influência direta na vida daqueles personagens. No fim, é quase como se a casa onde Jennifer Lawrence e Javier Bardem residem fosse, por si só, um personagem; com mudanças e posturas que exercem um impacto franco nos rumos da obra.

A espacialidade em A Baleia (2022)

Em seu primeiro trabalho na terceira década do século XXI, A Baleia (2022), Aronofsky parece resgatar as duas questões mencionadas e aglutiná-las. Um protagonista que, assim como os de Réquiem para um Sonho (2000), tem sua vida levada para direções não antes previstas através do vício — apesar de aqui o vício não assumir uma faceta tão complexa e primordial como na outra obra; é mais um pano de fundo. O ambiente onde vive também assume posturas importantes para seu desenvolvimento; porém, ao contrário de Mãe! (2017), o espaço não direciona os personagens, mas é moldado por ele.

O apartamento de Charlie (Brendan Fraser) é um reflexo da maneira como vive sua vida. Um reflexo vivo, entretanto. Em outras palavras, o apartamento se molda de acordo com o personagem reagindo às ações dele. Quanto mais Charlie agride sua própria vida, mais seu apartamento torna-se agressivo. Dessa forma, o espaço atua quase como um vilão para o professor. É um local que, cada vez mais, enclausura o personagem — principalmente através da iluminação baixa, da aglomeração de coisas, dos móveis que mais oferecem um desafio a Charlie do que uma utilidade, e apoiado pela proporção quadrada da tela —, reforçando nele o sentimento de melancolia e morbidez inerente à sua própria vida. Ademais, a residência proporciona ao homem um espaço de conforto, um lugar para se esconder do mundo. Ou seja, um lugar que permite seu vício atuar em segurança.

Aronofsky e Shyamalan

É engraçado que a maneira como o cineasta trabalha tais pontos (o vício e a postura do local espacialmente limitado) acaba fugindo do costumeiro para o diretor. Afinal, acaba soando mais como se o diretor estivesse, de certo modo, emulando o estilo de outro diretor (especificamente M. Night Shyamalan) do que trabalhando sob os paradigmas e óticas dos quais já está habituado.

Em A Baleia (2022), Aronofsky utiliza-se de tal limitação espacial similarmente ao palco de um teatro. Cada movimento é milimetricamente calculado dentro daquele espaço confinado, assim como seus tempos e suas ações. O cineasta dirige seu elenco semelhantemente ao que Shyamalan faz tem Tempo (2021). Se em Tempo (2021) os personagens, espacialmente limitados pela praia, encontravam-se como em uma peça teatral, a diferença com A Baleia (2022) é que o chão de areia é agora um concreto frio de um apartamento escuro.

Darren Aronofsky até recusa, inclusive, um elemento técnico bem presente em suas obras anteriores: a câmera na mão. Quando em Mãe! (2017), por exemplo, temos uma câmera na mão que segue freneticamente Jennifer Lawrence por seus percursos desesperados na residência, tal artifício transforma-se, em A Baleia (2022) em uma câmera fixa, que estabelece registos lentos e frios; tal qual a plateia de um teatro. Mostra-se bem diferente da câmera dinâmica e reagente costumeiramente adotada pelo diretor — remetendo, novamente, a Shyamalan e sua câmera.

A franqueza do melodrama

Essa dinâmica bem rigorosa, com a câmera menos pessoal, permite ao diretor uma abordagem bem mais melodramática. Desse modo, o filme aposta em uma relação mais frontal e direta entre os personagens, que ganha mais força pela própria reação do elenco do que pelos acontecimentos em si. Assim, assume uma faceta muito direta com a dramatização, onde busca o impacto emocional justamente pela abertura propiciada pelas dinâmicas do elenco decorrentes dos acontecimentos, supostamente, mais simples. Conforme utiliza-se dessa dinâmica marcada de palco teatral, consegue encontrar espaço para permitir confrontos mais iminentes e francos entre o elenco. Como resultado, Aronofsky consegue atingir, através dessa relação frontal com essa estrutura mais melodramática, uma reação muito mais crua, direta e poderosa no espectador.

Analogamente, até mesmo essa assunção do melodrama acaba propiciando o estabelecimento, novamente, de uma conexão com Shyamalan. Não é novidade para ninguém que a fé é um pilar do cinema do diretor indiano. De certo modo, também se mostra muito presente na filmografia de Aronofsky. A diferença, porém, é que este último trata-a de maneira mais direta, assumindo-a como um objeto temático bem franco. Aronofsky conta histórias Bíblicas — Noé (2014) e Mãe! (2017) são ótimos exemplos. Já Shyamalan utiliza da fé como um mote para seus personagens, uma força motriz que existe naquele mundo e guia aquelas ações; não costumando assumir esse caráter mais metafísico e direto de Aronofsky (literalmente recontando uma história religiosa).

A fé em A Baleia (2022)

Contudo, em A Baleia (2022), a fé é tratada dessa maneira mais Shyamalanesca. O filme é bem profético. Assume, em seu início, o caminho pelo qual irá percorrer e segue-o em uma estrutura crescentemente mórbida. Nunca há dúvidas do local no qual irá chegar. Desse modo, tal prenunciação abre espaço para o personagem de Fraser começar uma jornada de redenção que, apesar de não ser uma fé tão divina, é um trajeto bem religioso. O homem crê que irá morrer, e quer expiar seus pecados antes disso. Essa fé nessa missão quase divina é o que move Charlie.

Outrossim, em certos aspectos a fé religiosa até assume essa forma metafísica que Aronofsky gosta de trabalhar, através da figura do jovem missionário. Todavia, tal figura acaba sendo mais uma via para Charlie conseguir se redimir com sua filha do que, de fato, uma representação divina; é mais um dispositivo religioso. Por conseguinte, inclusive, acaba surgindo um embate bem interessante entre essa figura objetivamente religiosa e o papel da religiosidade na vida do professor.

Essa trajetória mórbida guiada por uma fé — uma crença mais na própria entidade da morte do que num pós-vida divino — adquire um aspecto de tensão crescente, deixando o espectador cada vez mais apreensivo com a chegada iminente do fim. E é, então, quando este fim chega, que todo esse sentimento carregado pelo filme atinge sua catarse. 

A liberação catártica

Por consequência, essa catarse acaba expurgando todos os elementos do filme até então. Ou seja, nesse momento, Charlie se vê livre de seus pecados, de sua morbidez inerente, de seu passado e de seu futuro. Assim sendo, tal catarse assume facetas que vão de embate com tudo proposto previamente. Isto é, ela é tão intensa, que acaba enfrentando até o formalismo da própria obra. 

A câmera assume planos e contraplanos mais rápidos e o melodrama rigoroso guiado pelos confrontos entre os personagens abre espaço para um drama mais intrínseco a uma conexão empática, de compaixão, do que de rebeldia. O caráter mais cru e realista da unidade estilística da obra se rende a um tom mais lúdico e fantasioso. O próprio espaço parece que desiste de tentar enfrentar Charlie e assume uma compaixão pelo homem — abre as portas do apartamento sempre fechado e troca a constante chuva por um céu ensolarado. A catarse encontra até uma vertente mais física mesmo, afetando inclusive o corpo do personagem. Tal momento é o intenso e belo descarrego de todos os sentimentos e emoções construídos ao longo da duração da obra.

Nestes sentidos, acaba que Aronofsky afinal insere em sua filmografia uma obra que conversa diretamente com sua carreira, mas também abre novas portas e possibilidades para o diretor. Contudo, não deixa de ser mais um filme que, independente de sua forma, exibe as ótimas virtudes do homem como diretor.


Pôster do filme "A Baleia", de Darren Aronofsky. Filme: The Whale (A Baleia)
Elenco: Brendan Fraser, Sadie Sink, Hong Chau, Ty Simpkins
Direção: Darren Aronofsky
Roteiro: Samuel D. Hunter
Produção: EUA
Ano: 2022
Gênero: Drama
Sinopse: Charlie é um professor de literatura recluso, isolado do mundo devido a seu problema com obesidade. Quando enfrenta a possibilidade da morte iminente, decide dedicar seus últimos dias para corrigir seus erros e se redimir com sua filha adolescente.
Classificação: 16 anos
Distribuidor: A24
Streaming: Indisponível
Nota: 10

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