CRÍTICA – TRAINSPOTTING: SEM LIMITES

CRÍTICA – TRAINSPOTTING: SEM LIMITES

Retornamos ao fundo do poço. Não caminhamos exatamente pelas mesmas linhas críticas que Human Traffic (1999), anteriormente falado por aqui. Estamos diante do filme que inspirou o mesmo e, este, caminha tão tenuamente próximo do horror. Possui seu humor negro, mas ele é visceral, perturbador e de certa forma, traumático.

Acompanhamos um grupo de amigos: o protagonista Mark Renton (Ewan McGregor); Sick Boy (Jonny Lee Tommy); Spud (Ewen Bremmer); Begbie (Robert Carlyle) e Tommy (Kevin McKidd) vivendo e sobrevivendo em uma realidade miserável, suja e pútrida da Escócia, perdidos por completo no mundo das drogas (inclui-se o alcoolismo). Já digo que dói meu coração não poder incluir aqui elementos de uma pendência literária de anos já, afinal, o filme é uma adaptação literária de Irvine Welsh, que conta com outra adaptação que será comentada aqui – fica o spoiler.

Afinal, do que se trata Trainspotting? O título já diz tudo: em uma tradução literal, Trainspotting significa “observação de trens”, mas qual sua relação com o filme? Observamos uma máquina moedora de seres vivos, a decadência do avanço industrial e os resultados de uma colonização histórica, que gera efeitos pesadíssimos graças as políticas neoliberais vigentes em todo o Reino Unido, graças aos feitos da 1° Ministra Margaret Thatcher (tão comentada já na crítica anterior citada mais acima no texto). Os trens ganharam sua conotação mística, mitológica, seres representavam o apogeu da 2° Revolução Industrial, abrindo trilhos e conectando com mais velocidade pessoas e mercadorias. Aqui, seremos observadores da decadência.

E nada contempla mais o eixo temático do longa que o texto de abertura tocando a icônica música Born to Slippy, ícone do cenário eletrônico britânico da época:

“Escolha viver. Escolha um emprego. Escolha uma carreira. Escolha uma família. Escolha uma televisão enorme. Escolha lavadoras de roupa, carros, CD players e abridores de latas elétricos. Escolha boa saúde, colesterol baixo e plano dentário. Escolha uma hipoteca a juros fixos. Escolha sua primeira casa. Escolha seus amigos. Escolha roupas esporte e malas combinando. Escolha um terno numa variedade de tecidos. Escolha fazer consertos em casa e pensar na vida domingo de manhã. Escolha sentar-se no sofá e ficar vendo game shows chatos na TV enfiando porcaria na sua boca. Escolha apodrecer no final, beber num lar que envergonha os filhos egoístas que pôs no mundo para substituí-lo. Escolha o seu futuro. Escolha viver.” (Feita pelo genial trabalho de voz, o narrador em primeira pessoa do filme: Ewan McGregor).

É claro, nosso personagem não escolhe nada disso! Ele caminha pelo vício na Heroína, problema de saúde gravíssimo da década de 80 que perdura e aumenta nos anos posteriores, sendo responsável não só pelo aumento dos viciados na substância, mas de doenças pelo compartilhamento de seringas. Os cortes de câmera abruptos, estilizados e propositalmente exagerados, não são nada próximos do conforto visual, representam o absoluto contrário, gerando um desconforto no espectador. Soma-se ao frenesi narrativo e a velocidade constante que a história é levada, que promove uma conexão desconexa, encaixando-se com a situação da nossa protagonista vive, tomado pela substância, entre a busca pela superação do vício e o prazer de se afundar cada vez mais. A narrativa vive nesse dualismo tanto em sua forma quanto em sua estrutura (conteúdo): prazer e horror. Os prazeres são expostos por uma representação (pela soma de todos os fatores que formam a 7° arte: imagem, som e aqui, principal agente nesse eixo: atuação) bem executada dos atores quando consomem a droga: parece a melhor coisa do mundo, nos teletransportando para a realidade prazerosa da heroína, vivendo o famoso ‘hit’ como é usada a expressão sobre o consumo e efeito quase imediato da substância. Esse é um dos pontos que deixou os conservadores de época, os bons pais e mães da família tradicional ensandecidos: “Trainspotting está glorificando e romantizando o uso de drogas! Isso irá corromper nossos filhos!” e, daqui que irei partir para o horror de Trainspotting. Afinal, apesar do humor negro, situações absurdas que promovem uma risada que sai pela culatra e personagens claramente fora do eixo da “normalidade”, Trainspotting consegue ser tão pesado e violento quanto “Requiem for a Dream” (Darren Aronosfky).

Nada marca tanto a identidade que perscruta por todo o filme quanto o apartamento de Mikey Forrester, que é interpretado pelo próprio autor do livro adaptado, Irvine Welsh. O ambiente é sujo, marrom, cinza, sem cores, nada é destacado, fora que é tão bem exposto que parece que somos capazes de sentir os odores daquele espaço. No meio do elenco de viciados, se repara naquilo que já apreende nossos corações e gera uma tensão: um bebê perdido em meio ao paraíso da heroína. Danny Boyle ousa para além do esperado, além do que seria possível imaginar, com a incrível e pavorosa cena onde Allison (Susan Vidler) começa a gritar aos berros… e nos deparamos com essas falas do narrador descrevendo a cena:

“Eu penso que Allison estava gritando pelo dia todo, mas eu realmente não havia escutado antes. Ela poderia estar gritando fazia uma semana pelo que eu sei. Já fazia desde que eu havia ouvido alguém falar pela última vez, mas alguém deve ter falado alguma coisa neste tempo todo. Com certeza alguém precisaria ter falado porra!”

Todos despertam dos sonos inebriantes da heroína, para se deparar com a maior atrocidade, onde o filme não esconde nada: o bebê morreu de fome e descuido dentro do próprio berço, esquecido e abandonado. Os gritos da mãe ecoam até o espectador e, aquela narrativa que levava em uma “leveza” sarcástica até então o consumo da substância dá seu primeiro e real baque. Ficamos extasiados, o coração trêmulo e, ainda por cima, a qualidade do texto ressalta os detalhes, ressalta a psique daqueles que ali rodeiam em torno da tragédia. Quando chegamos novamente aos pensamentos do nosso protagonista, deparamo-nos com a magnitude do egoísmo, a centralidade onde aqueles indivíduos não estão realmente conectados, amizades que se destroem, corroem e se amaldiçoam para viver entre as agulhas, sujeira e podridão.

 

Cena: O Bebê Dawn no Apartamento.

 

“It wasn’t by baby” (Não era meu bebe). Renton usa o sujeito “it” para se referir a criança falecida. A chama de “coisa”, de tão desconexo que está da empatia, da sociedade, o quão periférico seu pensamento já se encontra. Logo depois de falar isso, ele se corrige e diz “She wasn’t my baby. Baby Dawn, she wasn’t mine” (Ela não é meu bebe. Baby Dawn, ela não é minha). O que era antes “aquilo” vira “ela”, relembra que há ali uma pessoa, uma vida, um ser vivo. Um símbolo apoteótico da indiferença, da desgraça. É o ultra horror, que utiliza das mecânicas da verossimilhança ao extremo, apesar das cafonices, apesar dos jogos de câmera esquisitos, apesar do sarcasmo e da ironia, quando somados e chegamos à este ponto, entende-se a ferramenta: era para nos deixar desatentos com o primeiro dos muitos golpes que o filme dá no estômago. Trainspotting é uma ode à realidade pesada, triste, melancólica, violenta e trágica do vício! É puro horror, é cômico-trágico de uma maneira tão criativa que sua estética viria a influenciar tantos outros filmes do mesmo eixo temático! Não basta, não encerra aqui essa tortura psicológica, quando Mark Renton tenta pela primeira vez abandonar a heroína e se prende no quarto para lidar com a abstinência, temos um dos momentos que o filme caminha para o surrealismo. E aqui, há o “brilho” desse horror, que além de físico e psicológico, manifesta-se por meios sobrenaturais, onde Renton alucinando vê o bebe caminhando no teto do quarto se aproximando, fazendo referência visual à cena clássica de “O Exorcista” (1973).

Dentro do grupo, há um que “salve”, que não faz parte dessa conjuntura monstruosa que devora inocências, devora personalidades, devora qualquer aspecto que nos faça lembrar que ali residem “seres humanos”, desprovidos de toda e qualquer sociabilidade. Tommy, é um clássico menino branco loiro, vindo de uma família com melhores recursos financeiros, carregando uma independência e com um futuro pela frente. É até esquisito o quanto seu visual contrasta com os demais, seu aspecto é saudável. Tommy por culpa dos amigos, perde seu relacionamento, é abandonado pela namorada e fica sem rumo. Para tapar o buraco, corre atrás de Renton e, repete para o mesmo as palavras que ouvia com frequência: “é o ultimato, é melhor que sexo”, considerando-se adulto e que pode descobrir por conta própria. O desfecho é destruidor, quando Renton retorna a encontrar o amigo, adentra em seu prédio e já vê mensagens violentas pichadas pelas paredes, nota a sujeira e quando adentra no apartamento, o contraste absoluto com o que era antes: o mesmo tom de marrom corrupto, as mesmas sombras tenebrosas, o mesmo abandono. A destruição. O Deus carniceiro visitou aquele lugar, penetrou naquela alma e, logo depois, ceifaria mais uma vida. Como diria o Capitão Kurtz em “O Coração das Trevas” de Joseph Conrad: “O Horror! O Horror!”.

 

Cena: Personagem Tommy depois de entregue para o vício.

 

Renton tem uma fala simbólica e forte que define muito bem seus sentimentos em relação ao mundo e a si mesmo:

“É uma merda ser escocês! Somos os mais baixos, somos a escória da terra! O mais retorcido, miserável, servil, lixo patético que já apareceu na civilização. Algumas pessoas odeiam os Ingleses, mas eu não! Eles são apenas idiotas! Nós, pelo contrário, somos colonizados por idiotas. Nem achamos uma cultura decente para sermos colonizados. Somos governados por um bando de cuzões. É uma bosta de estado de bem estar social, Tommy! E não será todo o ar fresco do mundo que vai fazer a porra de uma diferença!”.

 

Cena: personagens principais saem para caminhar ao ar livre.

 

Esse discurso marca, pela tentativa de Tommy se conectar com os amigos e encontrar uma válvula de escape para o seu término. Ninguém se importa, ninguém realmente se importa um com o outro naquele momento e em sequer outro momento do longa. Iguala-se o raciocínio a própria viagem de trem que as personagens fazem: são levados ao vazio, ao nada. Nós espectadores, que observamos essa viagem, também concluímos: não se tem nada de bom para retirar daqui, a não ser a conscientização, o peso, a tragédia.

Há uma coletânea de momentos incríveis (apesar de trágicos) e o filme conta com um suporte de trilha sonora que surge sempre como o melhor suporte para composição de cena. Pensada estrategicamente para contrastar, realçar e abraçar seus variados momentos, nos altos e nos baixos. Não dá para esquecer o momento em que Renton quase morre de overdose e, assim que ele “afunda” em si mesmo, começa ao fundo “Perfect Day” de Lou Reed. Dá vontade de levantar e bater palmas, com o coração sangrando com tudo que nós estamos testemunhando.

Dentro desse mosaico multifacetado de infinitos desfechos melancólicos e depressivos, há um respingo de esperança que é nosso próprio protagonista. Desde o início, por ser o próprio narrador, nota-se que há um fluxo de consciência que entende, muito bem, apesar de frenético e de ceder para os prazeres, a situação em que se encontra. Sabe das dificuldades, sabe dos acontecimentos e tem até mesmo noção de quando perde controle do fluxo temporal e espacial por conta da dependência química. Mark Renton busca outra vida, chega num ápice de momento em que toma um rumo, busca um emprego e se afasta daquele ambiente tóxico, destrutivo e devorador, não quer se tornar o Tommy. Não quer afundar ao fundo do poço mais do que já tinha chegado tantas vezes, afinal uma hora não haverá volta. E sabe da necessidade de se afastar daquelas presenças, daquelas amizades “tóxicas”. E então… Escolherá a vida, abraçando por completo a medíocre vida que havia pintado no texto de abertura. Como ele a escolhe? Deixemos aos espectadores descobrir, afinal, se ainda não assistiu a esse clássico das ilhas Britânicas, vá logo e descubra!

E, vale lembrar! Essa não é nossa última visita aos filmes deste lugar tão criativo, medonho e ricamente ficcional!


Filme: Trainspotting (Trainspotting: Sem Limites)
Elenco: Ewan McGregor, Robert Carlyle, Jonny Lee Tommy, Ewen Bremmer, Kevin McKidd, Kelly Macdonald, Peter Mullan, James Cosmo
Direção: Danny Boyle
Roteiro: John Hodge
Produção: Reino Unido
Ano: 1996
Gênero: Drama
Sinopse: O filme conta as histórias de viciados em heroína que vivem num subúrbio de Edimburgo, Escócia, narradas do ponto de vista de um deles, Renton.
Classificação: 18 anos
Distribuidor: PolyGram Filmed Entertenmaint
Streaming: HBO Max, Prime Video.
Nota: 9,5

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