CRÍTICA – HUMAN TRAFFIC

CRÍTICA – HUMAN TRAFFIC

O cinema britânico, principalmente aquele que parte da influência do humor mórbido e pesado da Irlanda, tem um cantinho especial em meu coração. Talvez pela insanidade que toma muitas vezes, talvez pela brutalidade que é exposta em tons cômicos tão levianamente levianas, pelos cortes de câmera abruptos e em angulações diferentes, mas, principalmente, pela experimentação de como contar sua história. O mais clássico dos clássicos dessa linha de filmes é Trainspotting (1996, Dir. Danny Boyle), ícone das narrativas sobre abuso de drogas, humor ácido e brutal e edições visuais próprias com uma trilha sonora que não sai de nossas cabeças. Human Traffic faz parte desse contexto, do claro momento de crise identitária do Reino Unido, da grande Grã-Bretanha que sofre consequências pesadas, até hoje, das políticas ultra neoliberais da grande bruxa Margaret Thatcher (um abraço para ela que, se existir um inferno, precisa estar sentada no colo do capeta).

Human Traffic vai nos contextualizar uma narrativa que se passa no intervalo de um único dia no final de semana de jovens adultos nos seus 18 e 20 anos na vida urbana inglesa da virada do século. É interessante esse recorte específico e ver como tantas obras dialogam sobre a vinda e passagem da decadência pelas gerações britânicas que não mais vivem no ápice de seu governo e sua expressividade política e econômica no mundo, condicionados aos interesses do mercado financeiro de um país que lhe restou a significativa presença cultural no mundo.                       

Aqui, o filme já inicia com as imagens dos mais diferentes protestos da nova geração inglesa contra a polícia do país, uma geração que vive desconectada completamente dos valores tradicionais – ou seja, “fuck the Queen” – que descobre no uso de substâncias ilegais a válvula de escape em seus finais de semana. O refúgio na música eletrônica – acompanhamos o ápice da cultura das raves em casas noturnas da Inglaterra, onde origina-se o estilo chamado Jungle, que iria levar aos infinitos subgêneros do eletrônico – Psytrance, Deep House, Full-On e assim em diante. Músicas feitas para levar o corpo além, sem a necessidade de pensar, julgar ou entender, é projetar todo seu eu nas batidas e esquecer os planos terrenos – e claro, movimento que é auxiliado principalmente pelo Ecstasy. A melhor representatividade que observamos dessa realidade desconexa dessa geração britânica, é na icônica cena que nosso protagonista Jip (John Simm) propõe um novo hino nacional:

“Eu estou tentando ser eu mesmo

Entender todo mundo

É uma missão meio difícil

Olhar para todos

Tentando aprender alguma coisa

Mas eu estou ficando mais confuso

É difícil se manter legal

Nossa geração

Alienação

Nós temos uma alma?

Emergência Techno

Realidade Virtual

Nós estamos ficando sem novas ideias

Quem é a Rainha?”.

(Tradução minha)

Desconectaram-se da espiritualidade, vivendo em um mundo onde a materialidade é a máxima, campo de conflitos culturais onde a razão foi instrumentalizada, a ponto de não termos mais referências de certo e errado – e olha que estamos no contexto de virada do século, onde ainda não existia a pós-verdade e todos os conflitos ideológicos e semânticos que permeiam a atual realidade virtual e a internet.

É uma geração sem projeções econômicas ambiciosas, é um elenco de personagens que trabalham nos empregos mais mundanos: Jip é atendente de uma loja de roupas, Koop (Shaun Parkes) é atendente de uma loja de discos de Vinil, Nina (Nicola Reynolds) era atendente de uma rede de fast-food e Lulu (Lorraine Pilkington) vive desempregada. Além é claro do mais icônico Moff (Danny Dyer) que ainda mora com os pais e é, claramente, o mais envolvido em toda essa desconexão do espaço-tempo que essa geração vive – utilizemos esta personagem para encararmos a realidade que o filme anseia por transmitir em um panorama geral. Moff é o que se mostra com a maior estabilidade no sentido mais tradicional, afinal mora com seus pais e sua avó, numa clássica casa britânica de dois andares com jardins impecavelmente bem trabalhados, mas ainda não parece conectado àquele espaço, sua linguagem corporal nos mostra a completa divergência de sua persona com aqueles que deveriam ser seus mais próximos e íntimos. Moff não enxerga nos pais seu futuro, todos os personagens nos mostram uma afetividade do círculo de amigos, mesmo com as sub-tramas em suas relações que o filme explora aliás muito bem para um recorte temporal tão específico. Moff não construiu nada em sua independência, vivendo aos finais de semana na loucura do abuso de bebidas alcoólicas e drogas ilícitas. Qual enfoque o filme irá tomar para explorar sua identidade e a do restante do elenco? Seus micro-hábitos, expostos pelo narrador Jip que conversa diretamente conosco, sendo o guia dos comentários ácidos, dos exageros narrativos e das quebras de quarta-parede para rechear de ironias, sarcasmos e dos códigos sociais que estamos condicionados. É assim que Moff é exposto e se torna o exemplo mais poderoso, dentre eles, do distanciamento das realidades políticas e econômicas britânicas, para uma geração que tacou o “foda-se” para tudo, de uma identidade flutuante que é predominante após o momento que o Muro de Berlim cai.

Agora, quando a narrativa dá o enfoque para o trabalho dos personagens empregados, surge outra esfera crítica: se temos um que ainda vive com os pais e não trabalha, aqui nos é exposto os trabalhos mais tediosos do mundo. O exemplo mais caricaturesco é o de Nina que, na exata cena que vemos a rede de fast-food em que trabalha, todos agem iguais robôs, automatizados, sem força de pensamento, uma linha única de produção – além é claro de sofrer abusos constantes do patrão – e a sua libertação quando abandona o emprego. É um mundo onde se percebe a falta de perspectiva: não vemos um plano de carreira, não acompanhamos personagens bem sucedidos ou dentro da esfera clássica burguesa inglesa. É a classe média decadente, sem acesso aos recursos que antes eram vastos. Perdi o emprego? Tudo bem, logo arrumo qualquer outra coisa e consigo continuar vivendo nesse ciclo repetitivo até onde puder.

Quando retornamos o nosso enfoque para a narrativa, dentro da loucura que é a noite deles – ou melhor, do rotineiro escapismo daquela realidade medíocre – o filme consolida sua pilastra narrativa, sabendo equilibrar extremamente suas dosagens cômicas com as experimentações narrativas com o contexto musical que se expande nas casas noturnas do País de Gales. Nada supera as descrições que chegam ao apogeu dessa necessidade de buscar um além, a ideia da substância como interlocutor de um espaço-tempo próprio, quando a música bate e o mundo para de ser o que é. Acompanhamos perspectivas diferentes, com direito até do ator Andrew Lincoln, interpretando a personagem Felix, aparecer em momentos cruciais para tirar umas boas risadas da caricaturesca representação daquele micromundo. O engraçado é o filme saber das suas referências, tem muita noção das fontes que puxa e, claro, dos clichês que são mais do que óbvios. Uma jornalista se aproxima de Nina e Lulu perguntando-lhes o que irão fazer pela noite. A resposta demonstra a espécie de clichê que rodeava, o apavoro midiático do conservadorismo, tal qual com os Hippies, tal qual com os “junkies” das casas noturnas: vamos usar cocaína, heroína, utilizar de tudo, como em Trainspotting. O clássico filme de Danny Boyle é referenciado diretamente e sela-se a sua fonte, o seu clichê e o seu pilar. É uma narrativa que se embrenha nas mesmas problemáticas, mas, logicamente, numa escala muito menor e com um recorte virado para um lado mais apreciativo, menos nocivo do contato com substâncias ilegais.

Talvez aqui seja o ponto crucial e mais sensível para grande parcela dos espectadores que chegarem ao filme desavisados. As drogas são a válvula de escape dessa geração, essa era pós “hippie” que só restou o que não era lúdico. Todo aquele charme colorido, daquela geração “paz e amor” é colocado de lado. O Techno é o abandono de qualquer consciência, de qualquer estado presente, um escape para o desligamento da materialidade. É um grande grito ao “nada” que esse mundo britânico pós Margaret Thatcher vive, que até hoje está em crise, sem encontrar novamente seus eixos de uma nação que imputa influências culturais ao mundo inteiro. Human Traffic é um hino a banalização, um hino ao “niilismo” que predomina nessa década de 90, principalmente na virada do século, onde havia a crença de que tudo acabaria nos anos 2000, porém, mais uma vez, o mundo não colapsou. Se trata de um contexto específico, de uma geração com uma crise específica, em uma sociedade com uma linguagem própria. Para quem tem interesse pela ascensão da música eletrônica, ver esse “boom” do gênero “jungle” que daria caminhos para o nascimento de tantos outros gêneros nesse meio, vale muito a pena. Destaque para a trilha sonora recheada de grandes clássicos da época que eternizaram nas bases das derivações que iriam crescer e crescer, a ponto de dominar a cultura das “raves” no futuro não tão distante. Vá de coração aberto para a experimentação e de olhos sagazes para um filme longe dos grandes ícones do cinema da Grã-Bretanha.

Filme: Human Traffic
Elenco: John Simm, Lorraine Pilkington, Shaun Parkes
Direção: Justin Kerrigan
Roteiro: Justin Kerrigan
Produção: Reino Unido, Irlanda
Ano: 1999
Gênero: Comédia, Música
Sinopse: Cinco indivíduos: Jip, Lulu, Koop, Nina e Moff, sobreviver ao tédio da sua rotina de trabalho com o único propósito de viver plenamente o fim de semana.
Classificação: 18 anos
Distribuidor: Total Film
Streaming: Indisponível
Nota: 9,0

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