A comida é uma das partes mais importantes de nossas existências e dela podemos extrair não só a nutrição necessária para se viver, mas também histórias, vivências e momentos de sabedoria inesperada. Uma simples refeição tem o poder de reunir gerações e aproximar até aqueles que nada tem em comum. Pensando nisso, criei uma pequena lista de filmes em que a comida não é somente um detalhe da narrativa, mas um personagem a parte, até mesmo a protagonista em algumas destas histórias reunidas aqui.
1. Sabor da Vida (An)
Escrito e dirigido pela cineasta japonesa Naomi Kawase, Sabor da Vida (2015) traz a história de três personagens de gerações diferentes. Um homem de meia idade que dirige uma pequena loja de dorayakis (panquecas de feijão vermelho doce), uma senhora que busca, no mesmo local, um emprego de meio período, e uma estudante solitária que frequenta o lugar para comer, de graça, as panquecas “defeituosas” que não foram vendidas.
Em uma narrativa simples, Sabor da Vida enche os nossos olhos com uma história cheia de pequenas lições, onde os personagens encontram, uns nos outros, o consolo para uma vida dura, cada um a seu modo, à medida em que a sabedoria passa de geração em geração, assim como a receita da panqueca de feijão doce. Em atuações únicas e cheias de força, Kirin Kiri, Masatoshi Nagase e Kyara Uchida enchem a tela e os olhos do espectador. Sua relação, forjada a partir dos dorayakis se mostra firme e verdadeira, e os laços criados entre esses personagens florescem como as flores de cerejeiras que, como em muitos outros filmes japoneses, cumprem um papel extra nesta história, embelezando ainda mais a fotografia característica dos filmes de Kawase.
2. Lámen Shop (Ramen Teh)
A segunda produção japonesa da lista, Lámen Shop (Eric Khoo, 2018) é um drama familiar sobre um jovem aprendiz de cozinheiro japonês que viaja à Singapura em busca de informações sobre as famílias de seus pais já falecidos. Sem saber o idioma, ele se guia pela comida, experimentando de tudo um pouco, na companhia de uma amiga e crítica gastronômica.
Este é um daqueles filmes que nos deixam com fome. Enquanto assistimos à jornada de Masato comendo e cozinhando, as cores vivas e vibrantes dos ingredientes usados em suas receitas preenchem todo o ambiente e quase é possível sentir o cheiro das refeições cada vez mais aprimoradas do protagonista. Por outro lado, o drama da identificação com a família e o lugar desconhecido vão tomando lugar e tornando a experiência do filme agridoce. Enquanto a comida se torna o elo entre os personagens e suas histórias vão se desenrolando, nossas bocas e olhos se enchem de água, seja pelo desejo de comer o que se apresenta em tela ou pelas lágrimas que fluem com tranquilidade pelo decorrer da narrativa.
3. Lunchbox (Dabba)
A produção indiana do diretor Ritesh Batra, Lunchbox (2013) nos apresenta as histórias de Saajan, Ila e Shaikh. Em uma confusão no serviço de entregas de um restaurante, a marmita que deveria ser entregue ao marido de Ila acaba chegando às mãos de Saajan por engano. Nela, uma carta endereçada ao mesmo remetente é lida por Saajan. O que começa com uma resposta devolvida na lancheira de Ila, acaba se transformando em uma amizade, onde Saajan se torna uma espécie de crítico das refeições preparadas por ela, que passa a direcioná-las, agora intencionalmente, a este personagem.
Aqui, vemos um romance surgir à medida em que os personagens principais vão se conhecendo melhor. Saajan, interpretado pelo saudoso Irrfan Khan, é um homem de meia idade ranzinza, temido pelas crianças de sua vizinhança e pelo seu aprendiz e sucessor no trabalho, Shaikh. Ila é uma dona de casa silenciosa que quase não vê o marido. Em sua troca de cartas, Saajan e Ila se consolam e encontram um no outro um suspiro em suas vidas banais e medianas, enquanto compartilham seus sonhos e expectativas para o futuro. Não poderia deixar de mencionar o personagem de Shaikh, que cabe em Lunchbox como um alívio cômico eficaz e divertido, que adiciona leveza à história ainda que em sua situação desfavorável de vida. Cito um diálogo entre Shaikh e Saajan que sempre me traz um sorriso quando relembro:
“Minha mãe costumava dizer: ‘às vezes o trem errado lhe leva à estação certa.”
“Mas você me disse que era órfão.”
“Eu sou, senhor, mas quando eu digo “minha mãe costumava dizer…” as pessoas levam mais a sério.”
4. Os Brutos Também Comem Spaghetti (Tampopo)
A terceira e última produção japonesa aqui é Tampopo, ou Os Brutos Também Comem Spaghetti (Juzo Itami, 1985). O filme mais divertido dessa lista traz narrativas independentes relacionadas à culinária. Destaca-se a história de Tampopo, que dá nome ao filme. Esta personagem é uma dona de restaurante de lámen que busca se aperfeiçoar em sua receita. Ao mesmo tempo, um caminhoneiro e seu ajudante, interpretados por Tsutomu Yamazaki e um jovem Ken Watanabe, ao pararem para uma refeição no restaurante de Tampopo, decidem ajudá-la em seu objetivo. Enquanto estes personagens aprimoram a receita tradicional de lámen, frequentam também outros restaurantes e experimentam novas receitas e ingredientes diferentes, a fim de criar a combinação perfeita. É divertido assistir à seriedade dos personagens aplicada em sua missão. Como uma situação de vida ou morte, eles trabalham em sua receita, até atingirem seu ápice de sabor.
Entre isto, estão outras pequenas histórias de comida. Destaco a de um curso de etiqueta à mesa e a de um homem misterioso de branco que é muito sério sobre suas refeições e relações. Este personagem, interpretado por Koji Yakusho é cercado por mistério e sensualidade, e as cenas sexuais entre ele e sua amante são engraçadas e cheias de originalidade.
5. This is not What I Expected (Xi Huan Ni)
O último filme da lista é uma produção chinesa de 2017, dirigida por Derek Hui. Em This is not What I Expected acompanhamos dois personagens que são como óleo e água. De um lado está Xiao Meng, uma jovem chef interpretada por Sun Yi Zhou, e do outro Lu Jin, um homem arrogante e bastante peculiar, que está gerenciando a compra do hotel onde ela trabalha, interpretado por Takeshi Kaneshiro. Seus caminhos se entrelaçam quando Lu Jin, conhecido por ser exigente com sua comida, se encanta com um prato servido por Xiao Meng. Sem saber que já havia conhecido a chef misteriosa, ele passa a pedir somente por suas criações na cozinha.
Esse filme é bem divertido de assistir, pelas excentricidades dos dois protagonistas e pelas belas e aparentemente deliciosas comidas feitas por Xiao Meng. Pouco a pouco, estes dois personagens passam a construir uma relação, inicialmente misteriosa, mas que acaba por se tornar um romance improvável entre personalidades tão distintas. Kaneshiro e Yi Zhou são cheios de carisma e, ainda que muito diferentes um do outro, combinam como pão e sopa. Destaco a receita de macarrão instantâneo de Lu Jin, que transforma uma comida rápida em um prato gourmet, cheio de pequenos detalhes em uma receita normalmente tão simples.
Menção honrosa: Estômago
Não poderia deixar de mencionar aqui um filme nacional. Estômago (2007), dirigido por Marcos Jorge acompanha a história de Raimundo Nonato, interpretado de maneira singular por João Miguel. Aqui, temos a história de um homem nordestino que vive no Sudeste e tem talento para a cozinha. Em uma narrativa não linear, assistimos Raimundo Nonato na prisão, cozinhando para seus companheiros de cela, sob o apelido de Alecrim. Destaca-se também a personagem de Fabiula Nascimento, Iria, que com seu charme e carisma nos entrega um gostinho a mais nessa produção.
É na personalidade ambígua de Raimundo Nonato que a beleza da história se encontra. Enquanto nos apegamos ao personagem e ao seu carisma natural, vamos entendendo sua história e os motivos de estar ali encarcerado. Entre coxinhas de bar e banquetes na prisão, conseguimos dar boas risadas – algumas vezes nervosas – com a narrativa criada pelo roteiro afiado de Estômago. O ato final é uma obra a parte, daquelas que misturam sentimentos. No fim, é quase impossível não se encantar com Raimundo Nonato, ainda que as circunstâncias de sua história não sejam das melhores.
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