Pedro Almodóvar é talvez o mais conhecido cineasta espanhol da atualidade e um dos únicos que tenham conseguido expandir cada vez mais seu público sem estacioná-lo em apenas um grupo. Digo, Almodóvar une gerações que reconhecem nos seus trabalhos algo de novo.
Em “Madres Paralelas”, seu mais recente lançamento, duas mães assumem posturas quase sempre inevitáveis para se manterem próximas às suas filhas, ou dos bebês que acreditam sê-las. Como sempre ocorre num bom roteiro, há camadas, núcleos ornando o núcleo central em compasso, sem parecer intencional e/ou brusco (exceto por um núcleo que já já irei citar). Almodóvar assim consegue agregar sem dificuldades assuntos, mais uma vez, inevitáveis. A solidão da mãe solteira, as redes de apoio, a ausência paterna e materna, a liberdade e independência financeira e amor à profissão, são alguns desses assuntos. Todos eles nos lembram que ainda não estamos verdadeiramente prontas e prontos para lidar intimamente com as consequências de determinadas escolhas. Nossa psiquê parece não se importar com o quão modernas algumas ideias e práticas sejam ou mesmo com o quão belas possam parecer como discurso.
Os filmes do Almodóvar costumam tratar do desejo de forma real, não ideal. Talvez por isso resulte em algo como um alívio de sermos também aquilo que aprendemos, queremos ou conseguimos ser. Afinal “o coração tem razões que a própria razão desconhece”. Em “Madres Paralelas” não é diferente. Mesmo em situações criminosas ou inacreditáveis, seus filmes, através do roteiro, constroem uma intimidade e, portanto, universalidade tamanha que o público se reconhece, parcial ou completamente, incapaz de condenar ou mesmo fazer diferente. A construção das personagens, do seu contexto e das situações que as e nos envolvem, guardam uma essência ordinária, comum, embora nada banal. Mesmo os acontecimentos mais fabulosos, guardam em si uma possibilidade sobre a qual todos e todas nós já pensamos. Guardam até mesmo um desejo que, se ainda não sentimos, reconhecemos a possibilidade de senti-lo. Por exemplo, matar alguém por ciúme, como ocorre em “Salto Alto”. E aqui me refiro à fantasia de que alguém deixasse de existir para nos livrarmos do sofrimento que, acreditamos, sua presença nas nossas vidas nos traz. Quem nunca imaginou ou desejou o desaparecimento daquilo que se imagina ser a causa dos seus problemas? Compreender, por exemplo, uma universalidade mais ou menos inconfessável, íntima, e transformá-la em uma obra que torne esses desejos inegáveis é, sem dúvidas, o maior mérito do roteirista e diretor Pedro Almodóvar.
No entanto, não é à toa que cito “Salto Alto”. Esse é um dos filmes que mais sofrem no que diz respeito ao roteiro. Citarei apenas um exemplo: o flashback da Back del Páramo na praia com um homem que descobrimos cedo demais ser o atual marido da sua filha. Esse flashback é totalmente dispensável. Na cena do jantar ou mesmo nas seguintes , sentiremos que houve algo. Na cena do depoimento, a informação poderia vir com maior ou menor surpresa.
Todas as questões intrínsecas ao tema principal abordado pelo filme, embora não sejam óbvias, se adequam bem ao seu contexto e ao todo. Não é o caso da ditadura de Francisco Franco e suas consequências. É inegável a importância de abordar o assunto. No entanto, são perceptíveis algumas obviedades no roteiro no que se refere à abordagem do assunto. O encontro da personagem principal, a Janis, com Arturo, antropólogo capaz de ajudá-la a resolver a questão da memória da sua comunidade, é que vai desencadear o evento que move o filme. Depois disso, o assunto da ditadura e sua memória é deslocado para um plano secundário enquanto acontece tudo o que realmente parece importar . Nesse meio tempo, raras vezes se toca nesse assunto. Geralmente quando o Arturo ou seu nome ressurge. Somente quando o conflito principal se resolve e o filme “acaba” é que vai se resolver a questão secundária que motivou o encontro que gerou todo o conflito do filme. É demasiadamente previsível essa alternância.
Há o que me parece ser uma tentativa de inserir um tema relevante num contexto ao qual ele não pertence tão naturalmente. E a sensação é que o assunto “sobra” no filme. Como se fosse possível subir os créditos antes mesmo da cena final que, por sinal, é muito bela. É compreensível a importância de tratar de determinados assuntos no momento atual no qual “palhaços líderes brotaram macabros” e dialogar sobre eles com a juventude. Mas não posso deixar de exigir que, em uma obra de arte, os assuntos, quaisquer que sejam, sejam postos com a devida coerência. Ou seja, que se faça o possível para que o assunto a se tratar e o todo da obra não destoem. E, infelizmente, é o que me parece ocorrer em “Madres Paralelas”. A forma é sim tão importante quanto o conteúdo. E não podemos encarar essa afirmação como contrária à discussão.
No mais, e não é pouco, “Madres Paralelas” não deixa a desejar. Parece nos fazer lembrar que o desejo é o mais novo amigo dos insones. Há algo nessa proibição milenar que nos atrai. Algo dela nos constitui. “El Deseo”, produtora dos filmes do Almodóvar, já traz no nome a essência e o resumo de todas as obras do cineasta. É uma temática tão íntima quanto universal. Os retratos de amores, desamores e desejos sempre nos garantem uma reflexão ou identificação não-dicotômica. Sempre nos possibilita reconhecermos-nos em posições distintas, às vezes contraditórias, dentro das nossas próprias memórias e relações. Pedro sabe como fazer-nos aceitar o inevitável em nós mesmos.
Filme: Madres Paralelas (Mães Paralelas) Elenco: Penélope Cruz, Rossy de Palma, Milena Smit, Aitana Sánchez-Gijón, Daniela Santiago, Israel Elejalde, Julieta Serrano, Ainhoa Santamaría, Pedro Casablanc. Direção: Pedro Almodóvar Roteiro: Pedro Almodóvar Produção: Espanha Ano: 2021 Gênero: Drama Sinopse: Prestes a dar a luz, Janis e Ana dividem um quarto de hospital. Ambas são solteiras e engravidaram inesperadamente. No entanto, elas têm expectativas muito diferentes sobre a maternidade. Aos poucos, um vínculo forte nasce entre elas, especialmente quando o peso da verdade ameaça transformar a maternidade num pesadelo. Classificação: 14 Distribuidor: O2 Play/Netflix Streaming: Netflix Nota: 7,5 |