Recentemente o filme norueguês “A Pior Pessoa do Mundo” chegou aos cinemas brasileiros e fez relativo sucesso com a crítica daqui. O filme, que chegou a ser indicado em mais de uma categoria no Óscar 2022 (Melhor Filme Internacional e Melhor Roteiro Original), fala sobre as pressões sofridas pela mulher. Cobranças que vem de todos os lados, família, amigos e trabalho. Uma sociedade moldada por padrões arcaicos e que exige que todos sigam a sua cartilha. Uma mulher precisa casar e ter filhos, são estas as grandes metas que ela precisa ter em sua vida. Entretanto o filme dirigido por Joachim Trier não busca um aprofundamento da trama. Segue acontecimentos rotineiros, principalmente se pensarmos em filmes semelhantes com protagonistas homens, e tudo é tratado de forma leve e com muito bom humor.
A pressão pela maternidade e a maternidade em si, geralmente, são trabalhadas sob um olhar muito romântico. E impressiona como o cinema ainda reitera a posição da mulher como a única responsável pela cria e em como continua a desenvolver narrativas em que a figura paterna ao fazer o mínimo (sempre com aquele clichê de que é quem sustenta aquela família) é visto como um grande pai. O maior exemplo disso é o filme Um Homem de Família de 2016 (Crítica aqui).
Mar de Dentro (2020), filme nacional da diretora Dainara Toffoli e protagonizado por Monica Iozzi, segue um caminho parecido, principalmente, na primeira metade do longa. A personagem de Iozzi, Manu, é uma publicitária, respeitada na empresa que trabalha e possui uma posição, não necessariamente um cargo – já que isso não fica claro –, de comando. Tem uma vida na qual tudo segue à risca o que ela tem de sonhos e desejos. A reviravolta da trama é uma gravidez não planejada, consequência de um sexo casual com Beto (Rafael Losso), um amigo/affair com quem trabalha junto. O conflito que existe da concepção de que um filho, naquele momento da vida dela, seria uma grande barreira para a continuidade da ascensão de sua carreira, é extremamente legitimo. E se torna ainda mais legitimo quando Beto, ao saber que ela não quer ter esse filho, diz que ele quer e que tudo vai ficar bem. Essa maneira simplista com que os homens veem as aflições da mulher se baseia em séculos de uma cultura que inferioriza o sexo feminino e minimiza todos os seus sentimentos. Contudo o roteiro, escrito por Elaine Teixeira e pela própria Dainara Toffoli, é extremamente oportuno e direto, fazendo com que falas como esta do personagem Beto não passem batido. A resposta, então, de Manu é direta e reta: “Você vai carregar um bebê durante 9 meses? Vai dar de mamar depois?”. Essa réplica serve para abrir a discussão sobre as responsabilidades, os fardos e a autonomia do corpo da mulher, muito embora o aprofundamento de todos esses temas não aconteça.
Interessante notar como o texto é escrito com base na cultura com a qual estamos acostumados ao mesmo tempo que possui certa ironia, sendo toda a estrutura dos diálogos construída de forma muito inteligente. Beto, ao se posicionar a favor de ter o bebê, se coloca em uma posição incomum, ainda mais diante daquela circunstância particular, o não planejamento e um relacionamento indefinido entre eles. Não preciso citar o número de pais que abandonam, que não registram e que não assumem suas responsabilidades com seus filhos. Entretanto esse desenho do personagem é limitado, justamente, pelo posicionamento mais forte da personagem Manu. O roteiro vai fazer essa dança, dando corda para alguns personagens, mas deixando esta mesma corda nas mãos da protagonista que a puxará quando bem entender.
A primeira metade, então, explora esse lado do poder de decisão, única e exclusivamente, da mulher, mas quando parece que seguiremos por esta linha, o longa não consegue manter a postura e recai diante do apelo romântico, das juras de amor e das promessas de que tudo ficará bem. O primeiro problema está, justamente, ao usar um artificio frágil para dar sequencia a trama. Além disso o romance vivido por Manu e Beto sequer é desenvolvido, ele termina antes mesmo de conseguirmos identificar uma união entre eles. Mas o roteiro traz uma solução eficiente ao resgatar a vivência deles através de fotos que mostram os momentos que passaram juntos.
Espero não estar sendo indelicado ao dizer que durante a gravidez, os hormônios conferem às mulheres certas alternâncias de humor, bem como, muitas coisas, até as mais simples, podem se tornar verdadeiras hecatombes. Daí, possivelmente, temos o titulo do longa, “Mar de Dentro”. Essa mistura de sentimentos, intensos e debatendo internamente, fazem com que o período pré e pós-parto seja de extrema exaustão. Sabendo disso, não me parece verdadeiro que ao passar por um grande trauma, tudo se resolva de forma tão simples como aqui. E este é, para mim, o principal problema da primeira metade do longa. A trama começa a ser montada, personagens são desenhados e relacionamentos construídos, mas alguns destes desenvolvimentos são, simplesmente, interrompidos de forma brusca e a aceitação se dá pela negação. A negação de que em algum momento da trama aquilo foi importante.
Contudo é na parte final que o filme e, consequentemente, a protagonista amadurecem e soam extremamente sinceros com tudo o que nos é mostrado. Monica Iozzi impressiona com sua expressão de esgotamento, com seu choro no ombro de Arinda (Nani de Oliveira) implorando que volte no dia seguinte. Ao assistir esse filme passei por certas frustrações ao reconhecer no dia a dia da protagonista muito das dificuldades que aqui, minha esposa e eu, passamos depois do nascimento de nossa filha. A falta da rede de apoio para uma mãe é sufocante. Ninguém consegue dar conta de tudo sozinha. Sabendo disso me senti impotente ao não poder falar ao pé do ouvido de Manu que era isso que ela precisava e me doía ver o desgaste promovido por inúmeras noites em claro, sendo a desarrumação da casa um importante ponto no filme, mostrando como tudo está se desfazendo naquele ambiente e em como a personagem está sendo completamente sugada e sem qualquer perspectiva de que este cenário mudará. Novamente o roteiro é o responsável por mais um momento de grande reflexão da protagonista, quando ela percebe que receber ajuda não a faz uma mãe pior. Entretanto, como já havia citado lá em cima, o texto desta obra possui um tom irônico e muito inteligente, pois se ela, a um certo custo, percebe que é impossível dar conta de tudo sozinha e que, assim, toda ajuda é bem-vinda, a culpa por uma possível negligência ou por designar esta responsabilidade a outras pessoas não demora a aparecer. A mulher carregará, para sempre, o fardo de nunca conseguir agradar, de nunca fazer o suficiente para ser vista de uma outra forma pela sociedade e não, somente, como alguém que precisa ser uma boa mãe e uma boa esposa.
Mar de Dentro possui acuidades técnicas que elevam a obra como seu trabalho de design de som que abafa tudo ao redor de Manu, quando esta entra em processos de ansiedade e estresse. Tudo o que ouvimos é sua respiração ofegante. Melhor ainda é a metáfora que existe entre o aquário e a sala onde Manu trabalha. Os dois ambientes são cercados de vidro, possui uma fração do oceano/sociedade, mas, de todo modo, é belo. Afinal, o trabalho de Manu é levar a reflexão através de suas peças publicitárias, o que fica bem evidenciado em sua campanha para uma fabricante de fraldas.
Com uma primeira parte confusa, abrindo muitos caminhos e simplesmente abandonando alguns destes sem a menor explicação, Mar de Dentro consegue inverter essa derrapagem inicial e, através do roteiro e de uma atuação, extremamente, competente de Monica Iozzi, traz um trabalho forte e pertinente sobre a mulher e a maternidade. Por fim, ao abraço final entre mãe e seu filho ao som das rebentações das ondas, a emoção aflora por ver o amor em seu estado mais puro e genuíno.
Filme: Mar de Dentro Elenco: Monica Iozzi, Rafael Losso, Gilda Nomacce, Fabiana Gugli, Nani de Oliveira, Klarah Lobato, Zé Carlos Machado e Magali Biff Direção: Dainara Toffoli Roteiro: Dainara Toffoli e Elaine Teixeira Produção: Brasil Ano: 2020 Gênero: Drama Sinopse: Manuela é uma profissional de sucesso que, ao se descobrir grávida de um colega de trabalho, tem de lidar com a transformação de seu corpo e sua vida. Em meio a tantos desafios, ela se defronta com uma fatalidade que afetará ainda mais seu destino. Quando o bebê nasce, ela tem de aprender a ser mãe mesmo sem gostar, a priori, da maternidade. Classificação: Não informado Distribuidor: Califórnia Filmes Streaming: Indisponível Nota: 7,8 *Estreia dia 07 de abril de 2022 nos cinemas* |