Tenho voltado meus olhos, ultimamente, para os filmes com temática LGBTQIA+ e, realmente, me interesso por saber como esse movimento é flagrado pela câmera dos diretores que assumem essa responsabilidade não só perante à indústria cinematográfica como para a sociedade, de um modo geral, também. Recentemente o diretor brasileiro Aly Muritiba nos presenteou com Deserto Particular (Crítica aqui), um filme intenso, sensível e que pendula entre o ódio e o amor, principalmente quando contrasta o conservadorismo hipócrita com o amor livre. Este ainda é, para mim, um dos melhores filmes de 2021 e considero uma grande injustiça o longa não ter sido indicado na categoria de Melhor Filme Internacional no Óscar 2022.
O filme No Ritmo da Vida (2020), produção canadense dirigida por Phil Connell, constrói sua narrativa por um caminho similar ao filme Deserto Particular, mas, aqui, o ponto de vista é o inverso do colocado no filme brasileiro. O roteiro, escrito por Phil Connell e Genevieve Scott, desenvolve a busca pelo amor e por um sentido na vida do personagem Russell (Thomas Duplessie), um jovem que sonha em ser ator de Hollywood mas que se realiza como Drag.
Longe de todo o preconceito, ainda que saibamos que na vida real é o que mais existe, Connell está mais interessado em mostrar um drama familiar, os acontecimentos mundanos e as performances de Russell. Só existem três momentos em que o diretor recai com sua câmera em preconceitos que não chegam a ser verbalizados, mas toda a expressão corporal e o clima desenvolvido até aquelas situações, transformam as entrelinhas em algo bem claro para o espectador. E isso acontece em uma cena com o ex-namorado de Russell, Justin (Andrew Bushell), quando este é confrontado pela mãe de Russell, Ene (Linda Kash). São pontuações que, tanto o roteiro como a direção, necessitam demonstrar, mas que não querem se debruçar sobre o assunto de forma profunda, uma vez que este longa não se trata disso. No Ritmo da Vida se propõe a mostrar um outro lado,algo que seja mais comum a muitos.
Em um outro momento há uma grande quebra em toda a construção da cena. Enquanto Russell, acompanhado, passeia na praia, a iluminação é propicia para o desenho de uma cena romântica, a câmera flutua entre os dois personagens, explorando seus olhares, a música ecoa e deixa tudo mais leve, mas o diretor, de forma brusca, forma essa que é representada por uma atitude hostil e, até, violenta eu diria, destrói em segundos todo o repertório romântico utilizado na cena anterior. Esse choque serve como um recado, não só para o personagem Russell, mas entendo que sirva para muitos outros, de que o estado de alerta deve prevalecer em um mundo que parece estar bem focado na queda daqueles que não seguem os padrões.
O ritmo é o grande vilão dessa obra. Se o começo é muito bem pensado e tudo vai sendo encaixado, dando tempo suficiente para cada cena e para apresentar cada personagem, o segundo ato é arrastado e se não fosse pelas performances de Fishy Falters/Russell, que são intensificadas nessa parte do longa, a sensação seria de que o filme estaria andando em círculos, dando uma impressão de uma falta de clareza em qual caminho seguir. No entanto, durante todo o filme, mesmo com alguns personagens sendo apresentados e, de alguma forma, desenvolvidos, a trama é segurada e garantida por Russell e sua avó Margareth (Cloris Leachman).
Russell é um jovem um tanto desiludido com uma vida que, por enquanto, não lhe deu aquilo que buscava. Tinha um namorado, bem de vida, mas que, de certa forma, não o aceitava com tudo o que ele era. A relação com sua família também é cheia de entraves, durante o filme o vemos em contato com sua mãe e sua vó, mas percebemos o quão distante são essas três pessoas até quando estão em cena em um mesmo ambiente. Gradualmente passamos a notar uma mudança, a começar pelo convívio de Russell e Margareth.
Essa reconstrução de laços entre esses dois personagens soa extremamente natural e, ao mesmo tempo, traz conforto e reflexões. Margareth já está no fim de sua vida, é frágil e sua lucidez já lhe deixa na mão algumas vezes. Do outro lado vemos um Russell cheio de energia mas sem saber o que fazer com ela. Ele se encontra no início de sua vida, mas já experimenta decepções, desilusões e fracassos. Ambos se unem, principalmente, pelo estado solitário em que se encontram. Esse estado, sobretudo, do personagem Russell é o tempo todo explicitado através das várias passagens musicais nesse longa. A cada nova performance de Fishy Falters/Russell, ensaiando ou em um show, somos apresentados aos seus sentimentos mais íntimos e, assim, vamos recebendo mais informações sobre quem ele é, onde ele quer chegar e o que lhe falta.
Margareth – que alento para nossos olhos é poder presenciar um talento como Cloris Leachman, com mais de 90 anos, atuando de forma tão plena como foi neste seu último filme – é, sem sombra de dúvidas, a cereja do bolo que, no auge dos seus mais de 90 anos, apresentou uma vivacidade de dar inveja em muita gente e, de forma irônica, este foi seu último trabalho, já que a atriz nos deixou em janeiro de 2021. Na trama ela é uma personagem que já não vê muito sentido em sua vida, se reconhece mais como um estorvo para os outros e entende que sua missão aqui já terminou. No entanto, ao longo dos 90 minutos, a atriz preenche de luz cada cena em que está presente. Suas falas demonstram toda a falta de paciência típica de alguém que já viveu tempo demais para ficar com melindres em relação aos outros e,muito embora o filme se desenvolva em cima do personagem Russell, é por ela que sofremos. No início do filme, acompanhando Margareth em seus afazeres rotineiros em sua casa, somos levados a um estado de tensão provocado pelas imagens apresentadas e pelos sons extremamente altos do gás aberto do fogão, as incontáveis tentativas de acender o fósforo e o telefone tocando incansavelmente. Uma cena altamente inflamável e que nos faz, por fim, entender as necessidades e o seu consentimento com a presença de Russell, um neto, até então, ausente.as incontáveis tentativas de acender o fósforo e o telefone tocando incansavelmente. Uma cena altamente inflamável e que nos faz, por fim, entender as necessidades e o seu consentimento com a presença de Russell, um neto, até então, ausente.as incontáveis tentativas de acender o fósforo e o telefone tocando incansavelmente. Uma cena altamente inflamável e que nos faz, por fim, entender as necessidades e o seu consentimento com a presença de Russell, um neto, até então, ausente.
No Ritmo da Vida propõe uma visão adjacente ao mundo Queer, nem tão dentro e nem tão fora, mas, mesmo assim, separa algum tempo para a apresentação de personagens da vida real como a Drag Queen Fay. Além disso constrói muito bem um personagem que sabe de seu pertencimento a este universo, mas que ainda busca a sua melhor forma de fazer a diferença. O diretor Connell consegue, também, dar um passo importante ao representar duas outras gerações que enxergam tudo aquilo com muita naturalidade. No entanto o andar em círculos que se evidenciou no segundo ato do filme, prejudicou bastante, não só nossa imersão como também todo o potencial, principalmente dos subtextos, que foi idealizado nesse projeto.
Filme: Jump, Darling (No Ritmo da Vida) Elenco: Cloris Leachman, Thomas Duplessie, Linda Kash, Jayne Eastwood, Daniel Jun, Rose Napoli, Andrew Bushell, Mark Caven, Katie Messina Direção: Phil Connell Roteiro: Phil Connell Produção: Canadá Ano: 2020 Gênero: Drama Sinopse: Após uma separação, Russell deixa a cidade e parte para o campo, onde sua avó doente Margaret resiste à ideia de viver em um lar de idosos. Enquanto cuida de sua avó, Russell procura novas perspectivas como uma drag queen novata em um bar local e acaba tendo um inesperado encontro romântico. Classificação: 14 anos Distribuidor: A2 Filmes Streaming: Não disponível Nota: 6,7 |