A HISTÓRIA SE REPETE
Profissionais de enfermagem são alguns dos mais importantes e essenciais, e não só da saúde pública. São quem está lá com os pacientes no dia-a-dia, durante a noite, em todos os momentos de felicidade e tristeza. E a maioria esmagadora desses profissionais se entrega de corpo e alma e muito coração ao chamado. Mas e aquele um ou outro que, como em todas as profissões, abusa do seu acesso às pessoas?
A história tem alguns profissionais de enfermagem que abusaram desse poder: Genene Jones, Orville Lynn Majors, Niels Hogel, Edson Izidoro Guimarães… e Charles Cullen, tema de “O Enfermeiro da Noite”, talvez o mais prolífico de todos. Foi condenado por 29 homicídios, mas suspeitam que cometeu mais de 400 – o que o tornaria o serial killer mais letal da história. E isso aconteceu pela omissão de seus empregadores, por hospitais buscando se proteger de ações legais, que o deixaram escapar pelas frestas sem nenhum tipo de consequência. A história se repetiu muitas vezes.
SEM FREIOS
Charles Cullen é um americano que nasceu em 1960. Quando estava no ensino médio, sua mãe morreu em um acidente de carro e foi cremada antes de ser devolvida à família para eles fazerem os arranjos que quisessem para sua morte. Após um tempo na marinha, foi dispensado por razões médicas (incluindo estadias na ala psiquiátrica), e se matriculou para estudar enfermagem, se formando em 1986. Cullen foi um enfermeiro ativo entre sua formatura e 2003, quando finalmente foi parado e preso.
Sua primeira vítima confirmada foi em 1988, e, até 2003, Cullen passou por 9 hospitais. Nesse meio tempo, teve alguns encontros com a polícia e com alas psiquiátricas, e aparentemente levantava suspeitas em todos os hospitais que passou, mas ninguém fez nada a não ser demiti-lo. Isso mudou quando chegou no Somerset Medical Center, que no filme chama Parkfield Memorial Hospital. É aqui que começa o filme “O Enfermeiro da Noite”. E aqui paro meu histórico sobre Cullen para não dar spoilers.
EQUIPE CRIATIVA
Charles Cullen é interpretado com excelência por Eddie Redmayne. Ele consegue passar de charmoso e empático para frio e calculista em um piscar de olhos, e não entrega nada menos do que já esperamos dele. Amy Loughren, uma enfermeira real que trabalhou com Cullen no Somerset Medical Center, é nada mais nada menos do que Jessica Chastain, também entregando uma performance incrível de vulnerabilidade e força. Não vou entrar muito no papel de Loughren nessa história para não dar spoilers. A história de Cullen já é entregue desde o trailer e da sinopse, mas o papel dela não. Completando o elenco principal, temos Noah Emmerich, sempre crível em seus eternos papéis de figuras de autoridade, e Nnamdi Asomugha como os dois policiais que começam a suspeitar de Cullen, lutando contra todos os impedimentos burocráticos impostos pelo chefe da polícia e pelo hospital.
O filme é dirigido com maestria por Tobias Lindholm, co-escritor, com Thomas Vinterberg, de Druk e A Caça, e diretor de Guerra e de dois episódios de Mindhunter (sou viúva permanente de Mindhunter, inclusive). Krysty Wilson-Cairns, co-escritora com Sam Mendes de 1917 e com Edgar Wright de Noite Passada em Soho, e de vários episódios de Penny Dreadful, é responsável pelo roteiro ágil, no qual nenhuma linha foi desperdiçada. Wilson-Cairns baseou o roteiro no livro de Charles Graeber, “O enfermeiro da noite: Uma história real de medicina, loucura e assassinato”.
REALIDADE ASSUSTADORA
Ao fim do filme, a conduta dos hospitais pelo qual Cullen passou foi, para mim, tão assustadora quanto o próprio comportamento de Cullen. É um tipo de raiva institucional que passei também com a série Dahmer – Um Canibal Americano que, críticas à parte, representou muito bem o descaso das instituições, o que permitiu que Dahmer continuasse com seus crimes. Com Cullen, a história se repetiu também aqui. Ambos são pessoas que nunca esclareceram 100% o porquê de seus crimes, e que poderiam ter sido parados em diversas instâncias e nunca o foram. É um sentimento de impotência sem fim.
Mais do que causar um pânico desenfreado em relação aos profissionais de enfermagem, para mim, o filme é sobre isso: a falha das instituições. Se Cullen não fosse enfermeiro, é provável que achasse outro jeito de cometer seus crimes. E talvez, como Dahmer, por ser um homem branco de classe média com uma carreira, também passasse impune por outras instituições.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
Com pouco mais de 2 horas de duração, o filme voa. Nenhum momento é desperdiçado, nenhuma fala é por nada, nenhuma imagem é gratuita. Algo que por vezes é muito criticado por aí é a fidelidade histórica e, lendo por cima a história de Cullen, o filme não criou grandes exageros. Condensou algumas pessoas e tempos, mas se mantém muito fiel ao que aconteceu de verdade. E, apesar de focar pouco nas várias vítimas de Cullen, as poucas que aparecem são construídas de forma muito precisa e tocante.
Continuando com a comparação com a série de Dahmer, “O Enfermeiro da Noite” não pode jamais ser acusado de romantizar de alguma forma o assassino ou a violência cometida. Aqui faço um aparte sobre Dahmer: no fundo eu acho que quem romantizou Dahmer foram os espectadores e não necessariamente a série, mas, com tantos produtos já feitos sobre ele, é de se perguntar se essa “retraumatização” das famílias realmente era necessária. Voltando ao “O Enfermeiro da Noite”, em nenhum momento o filme tem ares sensacionalistas e entrega a história com realismo e importância – o que por vezes falta em produções de true crime. Filme recomendadíssimo que tem fortes chances de aparecer nas premiações do ano que vem.
Filme: O Enfermeiro da Noite (The Good Nurse) Elenco: Eddie Redmayne, Jessica Chastain, Noah Emmerich, Nnamdi Asomugha Direção: Tobias Lindholm Roteiro: Krysty Wilson-Cairns Produção: Estados Unidos Ano: 2022 Gênero: Drama, true crime Sinopse: Uma enfermeira sobrecarregada faz amizade com um novo colega no trabalho. Até que uma morte inesperada a faz enxergá-lo de outra forma (Sinopse oficial). Classificação: 14 anos Distribuidor: Netflix Streaming: Netflix Nota: 8,5 |