QUE HORAS ELA VOLTA?

QUE HORAS ELA VOLTA?

Que Horas Ela Volta? (2015), dirigido por Anna Muylaert, retrata a rotina de Val (Regina Casé) trabalhando na residência de uma família paulistana de classe média alta. Val, originária de Pernambuco, precisou deixar para trás sua vida e sua filha Jéssica (Camila Márdila), para embarcar na sua jornada a São Paulo, buscando prover uma estabilidade financeira maior para Jéssica. Em contrapartida a ausência de sua filha, Val acaba criando um vínculo afetivo muito grande com Fabinho (Michel Joelsas), o filho da família empregadora. Depois de treze anos, Jéssica decide prestar vestibular e precisa viajar a São Paulo a fim de fazer a prova. Sua mãe acolhe-a na casa de seus patrões, mas a personalidade e a visão de mundo de Jéssica começam a gerar conflitos na dinâmica, até então estável, da residência. 

O falso acolhimento

“Você é praticamente família”, frase dita logo no início de Que Horas Ela Volta? (2015) e que muito entrega quanto às elites brasileiras. Em uma estrutura social hierárquica constituinte de um modelo de opressão — e, nesse caso, leia como “ricos e pobres” — existe sempre um sentimento de medo naquele que ocupa a posição mais opressiva. Esse medo parte de um senso identitário hegemônico: em outras palavras, o medo de ser percebido como o outro.

A rica e soberba patroa chama a pobre e nordestina empregada de “praticamente família”, pois, mesmo dividindo a mesma casa por mais de uma década, a ideia de ser família com ela é algo inconcebível para a mulher. “Você poderia ser família, mas não é, é quase”; existe uma barreira invisível que separa o “quase” do “ser”. Barreira que serve para o conforto psicológico e segurança social — falarei mais à frente — daquele que habita a esfera superior da hierarquia. Isto é, se ambos são família (e são), ambos são parecidos; se ambos são parecidos, ninguém é inferior. E para a mulher da elite, alguém precisa ser inferior.

A estrutura hierárquica capitalista

O sentimento de inferioridade é essencial para o funcionamento de toda a dinâmica da casa dos patrões em Que Horas Ela Volta? (2015). Primeiro por amarras capitalistas: é rico quem acumula dinheiro. Dinheiro, sendo um recurso finito, para ser acumulado por alguém, precisa ser restrito a outro; ou seja, só tem rico onde tem pobre. Segundo por dinâmicas trabalhistas. Em um sistema escravista-moderno — onde a empregada não só precisa cuidar da casa, mas precisa ser mãe, moradora, cozinheira e conselheira, recebendo por uma só função; essencialmente, acaba por cuidar de todos os moradores da casa, além da residência propriamente — é necessário estabelecer no explorado um sentimento de inferioridade para que o mesmo não se questione quanto à sua posição. 

Submeter-se a uma posição trabalhista exploratória como essa — o pessoal da casa não pega nem o refrigerante na geladeira —, aliada a todo um tratamento pessoal desrespeitoso requer uma auto-estima rasa, da qual só é obtida através de uma segregação sócial que, embora seja estrutural, não deixa de ser maquiavélica. Em uma das cenas a personagem Jéssica ressalta isso inclusive, apontando que a mãe se sente “pior” do que os proprietários da casa. 

A chegada de Jéssica

Jéssica, personagem essa que vem com uma dualidade. Ao mesmo tempo em que irrita o espectador, por constantemente colocar sua mãe em posições sensíveis, também é quem atrai a torcida. Desse modo, sendo uma pessoa que se encontra fora dessa dinâmica exploratória, consegue enxergar as mazelas pelas quais são submetidas. Assim, inicia uma afronta aos patrões, de modo a tentar estabelecer uma visão mais humana e menos objetificada dela e de Val. 

A partir do momento da inserção da personagem na trama, Que Horas Ela Volta? (2015) parte para um embate velado, uma briga dissimulada de indiretas e falsas-educação — que em muito me lembrou o confronto domiciliar de Ataque dos Cães (2021). Frases falsas, proferidas com o intuito de humilhar e manter uma desigualdade social, ou resistir e estabelecer seu lugar em uma civilização igualitária.

Jéssica é uma personagem central para a jornada de auto-reconhecimento de Val. Não à toa, é justamente a partir de um feito dela que a catarse de sua mãe é atingida. É por causa de Jéssica que Val consegue quebrar seu vínculo com aquela dinâmica e perceber seu próprio potencial. Potencial de conquistar também tudo aquilo do qual seus patrões sempre a disseram que estava fora do seu alcance.

Epílogo

Essa catarse tem seu máximo justamente na cena da piscina, no ato final. Cena essa não só linda, mas vital, pois marca ali o final da obra. O filme acaba aí. A narrativa estabelecida e contada, os vínculos construídos e desconstruídos, tudo se encerra nessa cena. A partir disso, tudo é epílogo. Em síntese, um epílogo que mais serve para um deleite do espectador do que para um desenvolvimento de trama em si (até porque não existe mais trama). Uma expiação que agora não vem para seus personagens, mas para um sentimento construído em quem assiste desde o início da obra e que aqui atinge sua conclusão.

Que Horas Ela Volta? (2015) se inicia explicitando o motivo de seu título, contudo, se encerra ressignificando-o. É tocante a maneira como esse epílogo o faz, e também o prazer que o ato todo traz. Porém, é impossível não chegar aos créditos desta obra sem um gosto amargo na boca. Gosto esse proveniente de uma clareza sob a qual se é perceptível que, mesmo se tratando de uma ficção, pouco de ficção tem na obra. Igualmente, amarga-se ainda mais ao perceber que, muitas vezes, a realidade é pior do que a ficção.


Pôster do filme "Que Horas Ela Volta?", de Anna Muylaert. Filme: Que Horas Ela Volta?
Elenco: Regina Casé, Camila Márdila, Karine Teles, Lourenço Mutarelli, Michel Joelsas
Direção: Anna Muylaert
Roteiro: Anna Muylaert
Produção: Brasil
Ano: 2015
Gênero: Drama
Sinopse: Val parte de Pernambuco a São Paulo para trabalhar como empregada doméstica, buscando prover melhores condições para sua filha Jéssica. Anos depois, a garota precisa ir a São Paulo e é recebida pelos patrões de Val. Porém, sua presença abala a dinâmica e as relações da casa.
Classificação: 12 anos
Distribuidor: Pandora Filmes
Streaming: Globoplay, Netflix
Nota: 10

Sobre o Autor

Share

One thought on “QUE HORAS ELA VOLTA?

Deixe um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *