CRÍTICA – O PEQUENO CORPO

CRÍTICA – O PEQUENO CORPO

LA MÈRE ET LA MER

Em francês, ‘Mãe’ e ‘Mar’ tem a mesma pronúncia: ‘Mér’. Além disso, em francês, a palavra ‘Mar’ é feminina e não masculina como em português, traduzindo literalmente seria ‘A mar’ e não ‘O mar’. Eu amo o trocadilho que essas duas palavras possuem por si só e sinto que se encaixam perfeitamente com esse filme, sobretudo com aquele final.

Sendo assim: La mère, A mãe; La mer, A mar. A mãe e a filha.

O poder da palavra e a dor da perda que só pode ser comparada com o mar.

Através da linha tênue entre o céu e o mar, através do desfoque entre a areia e as vestimentas, através da mistura entre azuis e laranjas, somos conduzidos a um vilarejo italiano que transborda misticismo e angústia na mesma medida. Agata (Celeste Cescutti) carrega no ventre, na mente, nas costas e na vida o peso da maternidade. E através do olhar enlutado e disperso de dor, em busca de acalento, sentimos o desalento de uma mãe que busca a salvação de sua filha através da palavra. A italiana Laura Samani conduz seu primeiro longa-metragem com muita maestria e segurança.

Na Itália de 1900, a filha de Agata nasceu morta e, devido a isso, condenada ao limbo, sem nome e sem paz. Sua odisseia começa quando ela descobre que há um santuário místico onde crianças podem ser trazidas à vida por um instante, para nesse breve respiro conseguirem ser batizadas.

Os nomes são a forma do mundo, e o homem capaz de falá-los está a caminho do poder. A palavra é uma pintura do fogo, o nome é o fogo em si. O escritor Patrick Rothfuss faz essas afirmações bastante imbuídas de uma filosofia que tem berço em Platão. Sendo, os nomes e as palavras, a representação imaterial de seres, objetos ou sensações. Dessa forma, é a imaterialidade que provém do nosso conhecimento espiritual, que sabemos e sentimos no fundo da alma; no mundo físico, possuímos apenas nossas sabedorias medianas e rasas. A religião nega a nomeação da filha de Agata, pois, não se pode nomear algo que está morto. Portanto, nega sua existência no mundo. A mesma religião que afirma a existência de um corpo celestial, nega a existência de um corpo humano.

Com o céu azul de plano de fundo que transmite seu abatimento e o laranja do cachecol que retém sua dor na garganta, Agata caminha junto as paisagens belíssimas e melancólicas, pintadas com marrons e amarelos. E com o sussurro da esperança de uma vida, ela compartilha conosco a urgência de sua voz.

Banhados em religiosidade, os homens presentes no filme negam a Agata suas ações. Nomear, batizar e enterrar a filha. Não ser levada como mercadoria contra a sua vontade. Continuar o seu caminho e atravessar a caverna. A opressão religiosa contra as mulheres é algo atemporal. Uma personagem diz: “Eles levam tudo que temos.” A realidade e materialidade de ser mulher, faz com que eles achem permissível levar tudo que ela tem, mesmo que, infantilmente, usando a religião como alicerce para tal. Em contrapartida, as mulheres que Agata encontra durante sua caminhada a conduzem — com olhares, palavras e ações que compreendem e se compadecem com sua dor em algum nível — ao destino que ela busca com fé e esperança.

Acredito que o filme tinha força o suficiente para ter sido encerrado no momento em que Agata mergulha no lago e a vemos mergulhando, flutuando e em estado de torpor. É uma ótima representação da psiquê da personagem perante tudo que ela passou, de como ela enxerga sua existência naquele mundo — que silencia o simples ato de nomeação da filha que ela gerou e, portanto, sua existência. Entretanto, é imensamente significativo quando ao final do filme ouvimos a nomeação de sua filha, que representa a sua jornada até ali. Aliado ao fato de Lynx não tê-la abandonado, como havíamos pensado. Contudo, volto a dizer, o poder da subjetividade de construir aquela cena em nossa mente seria muitíssimo mais intenso do que ver o que havia dentro da caixa.

Um filme que conta, em forma de conto, a jornada mística de uma mãe em busca da existência de sua filha e a dor que a maternidade carrega. O luto é como o mar, que embala, afaga e afoga.


Filme: O pequeno corpo (Piccolo Corpo)
Elenco: Celeste Cescutti, Ondina Quadri
Direção: Laura Samani
Roteiro: Laura Samani, Marco Borromei, Elisa Dondi
Produção: Itália, França, Eslovênia
Ano: 2021
Gênero: Drama
Sinopse: Itália, 1900. Agata é uma jovem que embarca em uma jornada desesperada para chegar a um misterioso santuário para salvar a alma de sua filha da condenação eterna do Limbo.
Classificação: 14 anos
Distribuidor: Pandora Filmes
Streaming: Indisponível
Nota: 9,5

*Estreia dia 23 de novembro de 2023 nos cinemas*

 

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