Numa noite fria, numa mesa de bar, algo profético se inicia. Na Budapeste ocupada pelos nazistas, em 1944, um relojoeiro, um livreiro, um carpinteiro e o dono do bar bebem e jogam conversa fora, até que chega um estranho e pouco tempo depois uma pergunta é feita, tudo muda. O Quinto Selo (1976), do diretor Zoltán Fábri, é um clássico do cinema húngaro, um filme forte, temporal, conforme resgata um período histórico específico para dialogar com seu momento de realização, mas também atemporal por conseguir apresentar um dilema humano tão transcendente, da maneira mais superficial até a mais radical dele.
Nessa linha, poderia dizer que uma das delícias do filme é seu aprofundamento, mas não exatamente, desde início percebemos ali uma intenção, a montagem rápida com fragmentos do enorme quadro tripartite O Jardim das Delícias Terrenas deixa claro que há algo por trás daquela conversa de bar descompromissada. Poderia, então, dizer que a verdadeira delicia se dá pelo deciframento, dos signos, temas e tipos conforme o filme avança, mas não, o verdadeiro prazer se dá pela incerteza, pelo sentimento de dúvida sobre onde essa simples cena de iminentes implicações poderá nos levar. Prazer pela tentativa de antecipação dos eventos que irão ocorrer num filme, que logo de início já expõe pretensões, mesmo que não saibamos quais, ao expor o famoso quadro de Hieronymus Bosch. O prazer que tive foi pelo pré-clímax, foi pelos lentos passos de um enredo terreno que caminha em direção aos nossos céus e infernos.
Nesse percurso nos deparamos com uma vasta simbologia, presente desde o título, que ao decorrer do filme dá um forte norteamento. No primeiro plano pós créditos iniciais, já vemos uma farta peça de peito de boi sobre a mesa, algo raro naquele momento e que foi conseguida pelo livreiro em troca de uma pintura de Bosch. Ali a carne é um signo, um motivo narrativo que atravessa o filme expondo a fome ou a gula, o desejo ou a luxúria, a coragem ou a ira daqueles homens, feitos de carne. No cristianismo a ideia de carne está ligada à manifestação humana de Cristo, ao ser pecador, à errática humanidade que cai às tentação, à fraqueza das pessoas, que herdam do pecado original, a impossibilidade de salvação natural, tendo de lutar por ela, de se provar.
Vemos a gritante presença da carne em O Jardim das Delícias Terrenas, seja nos múltiplos corpos nus, humanos ou não, que conversam, transam, agridem, posam, dominam e realizam outros muitos atos. Eles estão no Jardim Éden, o paraíso do prazer, antes da maçã ser mordida, antes do bem e do mal. Seja olhando de perto e vendo um Deus representado em sua face humana, Jesus, de carne e osso. Dando alguns passos para trás e vendo o todo sinto uma sensação de caos, um caos que beira o êxtase e a guerra, aquele céu e inferno é tão mundano, aquela dinâmica de atos e pessoas é tão própria de uma sociedade, de uma humanidade.
A escolha do diretor de montar frames da pintura junto à estrutura do filme só aprofunda a carga da jornada que aqueles homens comuns irão ter, afinal eles são representantes dessa humanidade posta à prova. No ponto de virada do filme, quando o relojoeiro traz a pergunta hipotética aos companheiros, sobre como escolheriam voltar a vida em outro corpo, se tivessem que escolher entre dois homens. Sendo Tomoceuszkatatiki, o cruel soberano governante de uma ilha que cortou a língua de seu servo escravizado porque ele riu e depois mutilou toda família dele, seguindo a lei moral da época, sem sentir nenhum remorso. Ou sendo Gyugyu, o servo que depois de tudo não revidou e se contentou com o fato de estar de consciência limpa, por saber que não era mau como o soberano.
A partir dessa pergunta, a cena ganha um peso enorme, ninguém em frente a essa pergunta consegue não ficar inquieto, toda emoção que temos ali nos primeiros esboços de respostas, é sustentado não só por um texto poeticamente inteligente, mas por toda fotografia de planos sequências com quadros elegantemente deslizantes, que acompanham a dinâmica de tensão nos rostos deles, iluminados em chiaroscuro, naquele bar apagado, de uma só luz, escondido, mínimo e misterioso. Para além de recursos imersivos de um forte realismo nessa cena, somos acompanhados pelos sons exteriores à conversa, seja a destoante música que toca da máquina orquestra, com um quê circense, cômico e macabro, seja os pontuais passos externos ao bar que ameaçam entrar. Todos esses elementos sonoros criam uma sensação de inquietude, um leve desconforto em face daquela cena misteriosa, quase mítica, cuja pergunta verdadeiramente balança os personagens e o espectador, que não se livra facilmente dela.
Aqueles homens levam suas inquietações para casa, cada um lidando de uma forma bastante específica com a angústia despertada pela pergunta, vemos suas vidas, famílias e papéis que ocupam nesse contexto de ocupação nazista, todos são contra ela, nenhum deles é fascista, mas cada um lida com essa relação de poder de forma diferente. As contradições vão se acirrando e situações se complicando, o enfrentamento, a provação bate a porta. Como atendê-la?
No livro de Apocalipse da Bíblia, João viu um pergaminho na mão de Deus em uma aparição, tal texto era fechado por sete selos, esses compõe uma profecia de eventos que iriam acontecer no fim dos tempos. O quinto selo, cuja especificidade não vou comentar, se refere ao caminho que nossos protagonistas irão tomar.
Outra grande linha de força de O Quinto Selo é sua plurissignificância, mesmo com encaminhamentos balizados pela mitologia cristã, ele constrói um universo simbólico um tanto intrincado, não é claro o que cada um representa, e se representam exatamente, se são tipos humanos, tipos míticos, e se são tipos, se são elementos, se são do cosmos. Talvez até a metáfora aparentemente mais clara, no final do filme, seja falsa, dupla ou tripla. Que falas! Que personagens! A grandiosidade deles está em seu não esgotamento, está no seu mistério da carne.
Lançado em 1976 na Hungria, num momento até mais calmo, sob um afrouxamento da ocupação soviética no país, que data a partir do final da segunda guerra mundial, tendo passado por momentos turbulentos de revolta por soberania, brutalmente reprimidos, em 1956, nesse momento é pensado um filme que retoma os horrores da ocupação nazista e principalmente levanta fortes dilemas éticos e morais sobre a relação humana com o poder, sobre a condição humana em sociedade, percebo o filme como sendo lançado sob um sentimento de crítica a ocupação russa soviética, cujas dinâmicas de poder lembravam aspectos das forças obscuras com as quais um dia ela lutou, lembravam o abismo para o qual eles tiveram de olhar. Talvez seja reducionista eu interpretar eventos com metáforas filosóficas, mas o filme, com certeza, consegue levantar perguntas nessa chave reflexiva com maestria e sem querer dar respostas.
Ainda assim, o filme ressoa fortemente nos dias atuais, vivemos tempos em que a humanidade volta a ser posta a prova, afinal vivemos o apocalipse da ideia ocidental de valores humanistas estabelecidos, vivemos o fim da crença numa mínima decência das instituições de democracias liberais burguesas e seus órgãos internacionais. Gaza é um laboratório para os novos parâmetros de brutalidade que serão aceitos mundo afora.
Não acho que O Quinto Selo seja um filme pessimista, mesmo ancorado numa profética da tragédia, acho que ele é um filme de alerta, de despertar, de inquietação, de autorreflexão, um filme que lembra que tudo chega até nós, pessoas comuns, que não terão como fugir das forças distópicas e apocalípticas quando formos defrontadas com elas, pois estamos e sempre estivemos em provação, bom, pelo menos desde que existem Tomoceuszkatatikis e Gyugyus, senhores e escravos, lutamos para nos salvar, seja nos céus ou na Terra. Já diz a frase inicial de um gênesis, “A história da humanidade é a história da luta de classes”.
Filme: The Fifth Seal (O Quinto Selo) Elenco: Lajos Őze, László Márkus, Ferenc Bencze, Sándor Horváth Direção: Zoltán Fábri Roteiro: Zoltán Fábri Produção: Hungria Ano: 1976 Gênero: Drama, Guerra Sinopse: Em Budapeste, em 1944, um relojoeiro, um livreiro e um carpinteiro bebem num bar com o proprietário, quando um estranho se junta a eles. O relojoeiro faz uma pergunta hipotética que mudará suas vidas. Classificação: 18 Anos Distribuidor: Mafilm Streaming: FILMMICA Nota: 10 |
Sem sombras de dúvidas, esta é a análise mais profunda sobre o filme “o quinto selo”. Em relação ao filme, acredito que seja necessário ver outras vezes afim de buscar um entendimento pleno sobre a obra (se é que esta plenitude seja possível…).