CRÍTICA – UMA NOITE ALUCINANTE: A MORTE DO DEMÔNIO

CRÍTICA – UMA NOITE ALUCINANTE: A MORTE DO DEMÔNIO

Prometo de pés juntos que a maratona de David Lynch irá continuar, mas enquanto os interesses cinematográficos não se alinham, é interessante como sempre retorno de um jeito ou de outro a falar de terror por aqui. Não é atoa que está na própria descrição do meu perfil meu alinhamento com o gênero. E revisitar obras clássicas, aproveitando desse momento de entretenimento apresentando uma franquia modeladora de futuros – principalmente no subgênero do horror trash – para outras pessoas e vir aqui comentar sobre a experiência é algo único e singular que somente o Club do Filme me permite. UMA NOITE ALUCINANTE: A MORTE DO DEMÔNIO

Assistir o primeiro grande longa-metragem de um diretor que ficaria conhecido pela sua identidade estética, excêntrica, muitas vezes pastelona, porém criativa e acima de tudo divertida é uma porta de abertura para compreender tudo o que já continha ali na individualidade de Sam Raimi.

Um carro, cinco indivíduos, desses presentes, dois são casais. Jovens adultos com pouco dinheiro, disposição para beber e, claramente com intenções sexuais, alugam uma cabana no topo de uma montanha, longes de qualquer ponto próximo de civilização, para ter a liberdade de manifestar suas paixões mais pessoais. É questionado ao longo do caminho: por que esse lugar saiu tão barato? É dada a resposta mais plausível e simultaneamente realista: deve ser por conta de o lugar ser afastado e não deve estar no melhor dos estados.

E como a individualidade de Sam Raimi se denuncia nas primeiras cenas dessa sinopse dos primeiros cinco minutos de longa-metragem? Com a câmera seguindo o carro como se estivéssemos assistindo através dos olhos de um pássaro que o seguem. De trocas repentinas de lá e cá do carro em diferentes ângulos percorrendo a estrada. Cortes frequentes e rápidos do rosto de um personagem para outro enquanto dialogam. Tudo muito frenético, rápido e movimentado até demais para alguém que se incomode com pouca paralisação das imagens.

Assim, os recortes em primeira pessoa no ponto de vista de uma entidade que nunca é de fato revelada ao longo da narrativa realçam toda a formação da fotografia de Sam Raimi, tornando-se uma característica ímpar que se manifesta tanto em sua trilogia do Homem Aranha, quanto em seu mais recente trabalho com a Marvel, que foi Dr. Estranho no Multiverso da Loucura. Os “zooms” exagerados nos rostos das protagonistas, adicionalmente a uma câmera tremula que sempre se movimenta e se mantém rodeando o cenário, havendo muito pouco ou quase inexistente estagnação dela. Há uma constante sensação de frenesi em tudo que está sendo registrado graças a essa movimentação, tornando-se numa característica presente também em todos os outros filmes da franquia, dirigidas ou não pelo seu criador.

Assim, a câmera que flutua por todos os lados, passa por debaixo do carro, atravessa janelas e faz cortes aproximados dos rostos das personagens, torna-se uma personagem junto da narrativa, graças á toda essa fluidez e movimentação que detém. A própria imagem é vilanesca, afinal, quem sabe o destino das personagens se nós não testemunhássemos a aproximação da imagem para assim acontecer o manifesto da possessão?

Aproveita-se o gancho da primeira pergunta para elaborar uma segunda questão em cima dela: e o que faz esse filme enquanto participante do subgênero da possessão ser um destaque dentro de uma biblioteca de filmes tão massivamente explorada e tão pobremente aproveitada? As duas questões são necessárias para assim, partir-se para uma resposta única que contemple ambas.

A possessão presente na narrativa está longe de seguir um ritmo lento, cadenciado e devagar para construção do seu ethos climático onde o público deveria arregalar os olhos e ficar assustado com a perca do sono quando a garota inocente flutua em cima da cama enxurrando o padre responsável de seu exorcismo com palavrões criativos. Não. Em Uma Noite Alucinante, Sam Raimi opta para quando o ritual é entoado pelo rádio enquanto as personagens folheiam o icônico livro denominado como “Necronomicon: O Livro dos Mortos” – referenciando também a icônica obra do mesmo nome presente no universo ficcional cósmico lovecraftiano – não existe uma pausa. A possessão não é simplista, jogada para fora da câmera em seus primeiros seguimentos, não é escondida ou negada. Ela é repudiante, exala os odores pútridos dos corpos corrompidos e ela grita, salta, bate, morde, quebra e se automutila para atingir seu objeto: corromper, matar e destruir tudo aquilo que está diante de si.

Logo, ninguém está seguro do grupo de vítimas na cabana abandonada no meio do nada. A presença corrompe os bosques, está ressoando junto da própria natureza do lugar, realçando a presença das árvores e das raízes – que consequentemente destaca uma característica que também já se denuncia aqui e continuará presente nos outros filmes da franquia – os demônios além de violentos, são extremamente tarados para corromper corpos e mutilá-los até os níveis da destruição de genitálias. Uma pequena ferida já abre potencial para ser transformado em um corpo podre, cheio de feridas e pus. Se deparar com um cadáver no mundo real deve ser com certeza menos pesado do que os visuais escandalosos e exagerados de Uma Noite Alucinante. A possessão é vil, podre, pútrida, necrótica e vulgar. A possessão é exageradamente cômica-trágica, por utilizar de todos os recursos possíveis para atormentar, corromper e, quem sabe, tomar posse daqueles que ainda mantém a própria sanidade mental e segurança física.

As criaturas além de frenéticas, promovendo todo tipo de atrocidade em nome de lesionar a sua próxima vítima, são imortais. Não no sentido de que seus corpos não podem ser violados ou possuem regeneração acelerada. Os corpos não perdem sua consciência mesmo depois de ferimentos gravíssimos. A opção mais segura seria esquartejar os braços e pernas e enterrá-los, como o próprio estudioso do oculto comenta no gravador encontrado pelo grupo de sobreviventes. Não há solução para quem foi possuído a não ser uma morte violenta e horrorosa. E culmina-se no ponto fulcral sobre a diferenciação do tratamento com as possessões aqui de outros filmes: não é um exorcismo que irá solucionar toda a situação ou uma redenção divina onde as forças do bem sobrepõe a corrupção maligna promovida pelo diabo. Não. É a violência combatida com mais violência ainda!

E esse é o princípio e maior qualidade do longa-metragem: violência extrema, nojenta e superexagerada. Não há um momento de alívio ou diminuição da violência. Se fossemos colocar em um gráfico de crescimento da violência ao longo da narrativa do filme, seus picos só aumentam até o clímax, em que se manifestará o ápice da loucura, insanidade, nojeira e diversão! Pois, para além de todas as polêmicas, é uma violência que entretém, tomando rumos caricatos que se distanciam de qualquer representação que vise o impacto do público aterrorizando-o. Vale a observação que é uma análise baseada nos dias de hoje, afinal, é impossível – com a necessidade de um estudo mais aprofundado – para fazer um paralelo com a recepção do público no respectivo período de lançamento do longa-metragem, pois, a relação com o cinema de terror hoje em dia, principalmente no que tange aos filmes que utilizam desses elementos do gore, alteraram drasticamente. Um grande exemplo disso são os filmes da série Sexta-Feira 13, que antigamente eram considerados realmente assustadores e hoje em dia são ícones clássicos que mais divertem do que ocasionam no medo. Suponho, que possivelmente seria o mesmo caso envolvendo A Morte do Demônio, que trata de surpreender já em sua época com os efeitos visuais nojentos, escandalosos e extremamente absurdistas para escapar a qualquer noção de verossimilhança.

– É válido ressaltarALERTA DE GATILHO – que públicos mais sensíveis com a violência não irão ter uma experiência divertida e cômica com os exageros das cenas, afinal, uma personagem é abusada sexualmente por raízes em determinado momento da narrativa, o que pode gerar reações negativas mesmo que a tonalidade do filme seja super exagerada. – 

Assim, ignore as atuações que soam amadoras e os diálogos diretos, simplistas e às vezes até mesmo bobos, com direito a todos os clichês clássicos de um filme de terror. Liberte-se das correntes de visar sempre o fator “seriedade” para impor qualidade em relação aos filmes, afinal, deve-se adaptar conforme a proposta do que está sendo testemunhado e, quem sabe buscar analisar o que se tornou da obra nos dias de hoje. É válido também explicar pela ótica no respectivo período de lançamento, utilizando-se de fontes que podem ter vido a analisar ou testemunhar a recepção do público, mas, é impossível se validar completamente pelo que aconteceu no passado. A não existência da “seriedade”, assim, colocar o longa-metragem e se permitir curtir apreciando os fatores estéticos que predominam nesse primeiro trabalho de Sam Raimi são vitais para se entender o porquê A Morte do Demônio se torna essa hecatombe no gênero do terror trash.

Ash Williams (Bruce Campbell) é nosso protagonista e se tornaria uma figura icônica de toda loucura que gira em torno dessa franquia, participando de grande parte dos títulos ou tendo sua figura sempre mencionada. É interessante a evolução da personagem que abandona por completo sua sanidade com os pés no chão da realidade, com reações plausíveis conforme todo o desespero que o rodeia para abraçar a total insanidade da sua realidade, visando exterminar das formas mais criativas possíveis os demônios que o perseguem. Seu carisma é intrínseco, conquistando o público assim que abraça por completo a necessidade combativa de sobreviver a essa noite alucinante e promover o tão famoso trocadilho do título traduzido: matar o próprio demônio!

Porém, há um fator que nos permite estender nosso debate sobre a questão de “seriedade” e a recepção do público, adicionalmente compreendendo que Sam Raimi controlou as rédeas nesse seu primeiro longa-metragem. Apesar de todos os absurdos e cenas que podem soar cômicas, há um que de “seriedade” que se mantém ao longo do filme, nunca abraçando por completo o lado trágico-cômico que predominaria na sequência. Esse primeiro toma os rumos da violência extrema, gerando expectativa de qual será a próxima loucura que testemunharemos, mas nunca abandona por total um lado narrativo que ignora o bizarro ou até mesmo o subtexto cômico pelo exagero extremo. Talvez, se o objetivo no respectivo período de lançamento original do filme fosse o impacto e o impressionar pelas cenas pitorescas de sangue, vômito e queimaduras, podem ter cumprido com total mérito. Atualmente, mantendo uma perspectiva do restante do que foi produzido por Sam Raimi, principalmente com Army of Darkness (1993) terceiro filme da trilogia original de Evil Dead (Uma Noite Alucinante), nota-se que Sam Raimi pode ter contido a própria ousadia de abraçar por completo o absurdo. Talvez seja até mesmo por isso que Evil Dead 2 (Uma Noite Alucinante 2) tenha exatamente o mesmo roteiro que o primeiro, mas, refeito para abraçar o lado cômico, absurdo, violento e divertidíssimo que compõe as realidades narrativas desse universo nos posteriores trabalhos que o compõem.

Pode não ser a melhor experiência para todos os públicos. Pode sair pela culatra daquele que visa um terror com um tom “sério” e com algo realmente genuíno a comentar e elaborar. Pode também se desviar em seu propósito frustrando o público mais do médio consumidor que somente queira tomar uns bons sustos, não se assustando com absolutamente nada e até mesmo rindo da sensação “pastelona” que o filme tem.

Mas, ainda tem minha recomendação. É sempre válido e importante reassistir ou testemunhar pela primeira vez algo que criou toda uma imagem icônica e de suma importância para um gênero do cinema. É clássico, ultrajante e entretém. E, no fim, o objetivo principal e inicial de toda a arte não é entreter? Fica ai a polêmica!


Filme: The Evil Dead (Uma Noite Alucinante: A Morte do Demônio)
Elenco: Bruce Campbell, Ellen Sandweiss, Betsy Baker, Sarah York.
Direção: Sam Raimi
Roteiro: Sam Raimi
Produção: Estados Unidos
Ano: 1981
Gênero: Terror, Suspense.
Sinopse: Cinco estudantes da Universidade de Michigan decidem passar um final de semana em uma casa isolada. Lá eles encontram o livro dos mortos, um documento que data da época da Babilônia e que está relacionado ao livro dos mortos egípcio. Enquanto vasculham a casa os amigos gravam em fita alguns encantamentos demoníacos, escritos no livro. A partir de então eles são possuídos por espiritos, um a um.
Classificação: 18 anos
Distribuidor: New Line Cinema
Streaming: Prime Video
Nota: 8,5

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