CRÍTICA – GAROTA SOMBRIA CAMINHA PELA NOITE

CRÍTICA – GAROTA SOMBRIA CAMINHA PELA NOITE

Esse é daqueles filmes que somente o cartaz gera determinada curiosidade pessoal em assisti-lo. Quando isso é somado às várias recomendações que recebi ao discorrer dos anos, finalmente chega naquele momento correto de passar pela experiência. O cinema iraniano sempre chega a mim por recomendações de amigos que acompanham ou postagens na internet que sempre geram interesse pelas imagens belíssimas de diversos filmes. A minha familiaridade com ele é inexistente, sendo esse a primeira experiência que tenho com algum filme dessa nacionalidade. Nada melhor do que iniciar explorando seu imaginário ficcional utilizando de uma criatura mitológica tão amplamente popular que são os vampiros. Garota Sombria Caminha pela Noite

Iniciamos em uma realidade decadentista, de uma cidade iraniana nada romantizada e claramente sob influência de um regime ditatorial. A indiferença das personagens em relação aos males que são encontrados no cenário nos diz que aquilo já foi normalizado no cotidiano. Arash (Arash Marandi) nosso protagonista vive em meio à essa realidade podre com orgulho estampado do carro que possui – que ressalta bem no início do filme o quanto precisou trabalhar para o adquirir – e, esse é seu único bastião de segurança, enquanto a única presença genuinamente ingênua e inocente que o faz companhia é seu gato. Seu pai Hossein (Marshall Manesh) é viciado em tranquilizantes por conta de dores – e daí advém o conflito ao redor do filme, pois ele está devendo para o traficante Saeed (Dominic Rains) e como compensação de sua dívida, Saeed leva seu carro.

Os maiores elogios recairão aos seus visuais – que tal qual em O Vício (1995) – utilizam das cores pretas e brancas para composição de seu ambiente. Os jogos de sombras, mesmo nos ambientes diurnos, são extraordinários, havendo visuais que poderiam muito bem ser enquadrados na parede de tamanha beleza. A representação das vielas, das ruas vazias, dos silêncios de uma cidade que beira ao clima de abandono – não é atoa que a própria cidade é chamada de Bad City – encantam pelo seu espetáculo visual.

A temática dos vícios, da violência e desigualdade também são presentes em seus visuais, narrativa e subtexto. Vemos claramente que há um subtexto de disparidades sociais, em que Arash trabalha como um faz geral de uma família muito mais privilegiada socialmente, enxergando como solução de sua situação – pela perca do carro – roubar brincos de diamante da filha da família. É uma realidade em que a violência e a quebra das regras éticas e morais é normalizada, existindo microssituações que levam aos personagens subverterem essas morais para buscar resoluções aos seus conflitos pessoais.

A presença de Shirin ou a garota (Sheila Vand) – a vampira do filme – possui certo fascínio pelo realce das escolhas fotográficas. Seu silêncio e aparecimentos repentinos durante a noite possuem uma beleza misteriosa. Sua figura é contraditória aos conflitos estabelecidos no roteiro do filme – não há sofrimento moral pela sede de sangue vampiresca, o conflito entre humanidade e besta. Apesar de possuir em seu texto o conflito moral, dito pela própria personagem que atesta para Arash não ter um histórico muito benigno – afinal, ela é uma vampira – é contraditório pelos seus atos ao longo do filme, que beiram ao heroísmo ao salvar outras pessoas de indivíduos que beiram a malignidade. Shirin é responsável pela cena grotesca de morte de Saeed, havendo um uso muito bem pensado da violência, quebrando toda nossa expectativa daquele ato do beijo vampiresco que geralmente acaba representado de maneiras sensuais em uma brutalidade sem perdão. Aqui é estabelecida uma armadilha – criou uma expectativa em mim e na minha companheira de que o filme caminharia para um lado mais violento, utilizando-se do gore para uma representação mais brutalista da figura vampiresca. No entanto, não existem outras cenas que gerem a mesma sensação, havendo essa única e singular cena em que o gore se manifesta. Por isso o contraditório, pois, não observamos seu arco narrativo anterior – só o ouvimos em suas palavras de que era uma pessoa má – logo seus conflitos internos sobre sua natureza bestial já ocorreram e foram solucionados. Shirin compensa, então, através do heroísmo justificativas para se alimentar de seres humanos, devorando, assim, seres em que considera nocivos para a sociedade ou as pessoas que ela observa.

Seu encontro com Arash estabelece um diálogo sobre o estrangeirismo de suas individualidades com aquele ambiente. Arash tem um pai viciado, está desconectado da realidade – quando vai encontrar Saeed para entregar os brincos furtados, encontra o traficante morto e rouba seus pertences, substituindo seu papel e se tornando o fornecedor de drogas para outrem. É um momento em que encontra determinado status, aliás, indo em uma festa fantasia (em que se veste de Drácula) que é citada pela filha de seus antigos patrões, em que a mesma personagem após uma insistência nociva o faz experimentar ecstasy. Há toda uma modelagem de interações sociais ilusórias, existindo uma manipulação dessa personagem (de uma classe social mais favorecida) sobre o garoto ingênuo que mal sabe seu papel naquela realidade (mesmo após recuperar o carro). O estabelecimento da relação entre Shirin e Arash se dá quando ela o encontra – enquanto vagava de skate pela cidade – nas ruas de um bairro privilegiado completamente drogado observando um poste.

A conexão entre ambos ocorre, pois, Arash em nenhum singelo momento demonstra periculosidade para Shirin, inclusive, o mesmo sem ter noção, reconhece nela a mesma solidão que reside em sua individualidade.

Shirin é uma figura solitária que controla seus impulsos através da musicalidade, expressando-se com danças e descontando nos movimentos toda energia de seu espírito. É quase ritualístico. Antes de a Garota Sombria Caminhar pela Noite, é necessário o ritual quase tântrico de libertação das normalidades, para assim liberar os impulsos e encontrar sua vítima noturna dentro de suas regras morais.

Arash é uma figura solitária que busca algum tipo de reconhecimento social, quase vivendo enquanto pária devido a sua condição social e sua situação familiar. Sua mãe é falecida (e parece ter sido a ponta de equilíbrio que se quebrou quando veio a falecer), seu pai é um viciado químico. Não encontra sua posição e, toma atitudes que considera possíveis soluções (se tornar o traficante em lugar de Saeed), mas nada disso parece preencher sua existência ou sua ânsia por ser reconhecido por alguém. Estabelece também um código de regras próprio – se justificando pela necessidade de se tornar algo ou alguém nessa realidade quebrada.

Eles se encontram nessa mesma pendência solitária e estabelecem uma conexão que parece amorosa. Mas é uma relação amorosa próxima de um idealismo purista, em que não existe uma proximidade carnal e sim uma proximidade de essência, de seus pensamentos quebradiços. Peças de um quebra-cabeça que se encaixam pelas psiquês alinhadas na mesma solidão individual em que viviam.

Porém, esse lado heroico da personagem de Shirin – uma vampira com códigos morais em relação há quem vem a se tornar sua vítima – gerou um incômodo, pois, quando é somado a um dos gêneros em que ele é classificado (Faroeste) e quando se pesquisa sobre o filme, acaba sendo especificado como o primeiro Western Spaguettti iraniano, é elaborada uma contradição macro em sua proposta. Os filmes de faroeste do respectivo período do cinema italiano que receberão essa classificação (Western Spaguetti) possuem características bem específicas: produções mais baratas, efeitos especiais trash e uma manifestação exagerada da violência, com alguns beirando ao ridículo (sem desmerecê-los é claro). Com exceção da cena em que Shirin mata Saeed, em nenhum outro momento o filme irá dialogar com essa estética, somente se forçamos a questão da ambientação de uma cidade em meio a um bioma desértico – que remete aos cenários desérticos dos E.U.A e norte do México em que grande parte dos filmes de faroeste se ambientam. Seu texto também é enfraquecido por uma aparente mensagem que não foi muito bem capturada em seu subtexto, afinal, parece faltar algo com clareza em suas intenções. Existe todo o paralelo com os vícios e violências, essa normalização de uma realidade ditatorial, mas servem em que? Não há uma conexão clara entre seus elementos e a falta de autoridade na cidade – e consequências para os atos das personagens – desde o assassinato de Saeed até a não busca de uma solução para a morte do pai de Arash geram estranheza. É possível caminhar pela via interpretativa de que as personagens que morrem são periféricas, figuras que não geram determinada importância na sociedade a ponto de oficiais investigarem suas mortes. Mas, Saeed é um traficante, provavelmente possui fornecedores, contatos e figurões para ter trilhado esse caminho e predominado em naquele território. Ninguém se importa. Arash furtou os brincos da filha de sua patroa, não existe consequência ao redor de seu ato, nem mesmo a própria personagem parece ter se importado com o furto.

Talvez seja essa a proposta final do roteiro. Nessas realidades quebradiças “mais nada possua importância ou relevância”, em que indivíduos fazem o que for possível para continuarem vivendo. De que o que é realmente relevante é a conexão entre indivíduos que necessitam da presença de outro para tem pilares motivacionais em continuar vivendo, mesmo uma figura que transita entre a vida e o “Além-Vida” – no caso Shirin – para manutenção de sua humanidade visa em Arash essa conexão com o lado “vivo” que ainda possui enquanto moralidades e éticas que regem a humanidade em seus códigos sociais.

Há toda uma conveção estética em que sua montagem possui influências variadas: ao cinema clássico (preto e branco), ao que podemos chamar de moderno (a manifestação de uma trilha sonora indie rock e seus temas) e ao pós-moderno (por ter uma produção de hollywood e a somatória dessas referências teoricamente contrastantes e um claro discurso feminista).  Talvez essas diferentes estéticas dialoguem com a própria falta de temporalidade que o longa-metragem transmite em seu roteiro e ambientação, somadas a uma tentativa de desconstrução da temática vampiresca por não remontar aos conflitos clássicos das criaturas enquanto protagonistas (imortalidade, bestialidade, perca da humanidade etc.). Há todo um discurso feminista em seu roteiro, afinal, Shirin defende figuras femininas que sofrem atos de violência ao longo do filme (especificamente uma cena em questão) que a leva a executar o pai de Arash. Devido a minha não familiaridade e domínio desse tropo teórico para analise (teorias feministas), optei por uma outra estratégia analítica, buscando não falar superficialmente sobre essa via analítica sobre o filme, assim, mantendo-me em um eixo uma análise em seus tópicos estéticos e temáticos vampirescos e as possíveis interpretações visuais e narrativas. 

O panorama vampiresco e todas as temáticas que tocam para com esse subgênero ficcional são colocados completamente de lado. É novamente um recurso utilizado mais pelo fator estético do que trabalhado por uma busca inovadora ou clichê que toca ao diálogo histórico artístico das criaturas. Foi uma porta de abertura para o cinema iraniano estranha, porém, com retoques de originalidade (dado ao seu ambiente), mas nem mesmo tocou aos dilemas morais e culturais da sua nacionalidade. Tem uma aura hollywoodiana que me afasta um pouco do filme, afinal, quando exploro filmes de nacionalidades em que não possui tanta familiaridade, o que sempre me gera encantamento é o encontro com questões culturais que são distantes a minha própria figura ou a minha familiaridade com as questões criativas específicas desses cinemas estrangeiros.

É um filme morno, belo visualmente, mas fraco em sua imersão, apesar de todas as questões anteriormente elaboradas. Considero e suspeito que não tenha sido a melhor das escolhas para iniciar uma exploração pelos filmes do cinema iraniano.


Filme: A Girl Walks Home Alone At Night (Garota Sombria Caminha pela Noite)
Elenco: Ana Lily Amirpour, Sheila Vand, Arash Marandi, Marshall Manesh, Dominic Rains, Mozhan Navabi, Rome Shandaloo
Direção: Ana Lily Amirpour
Roteiro: Ana Lily Amirpour
Produção: Estados Unidos
Ano: 2014
Gênero: Terror, Faroeste
Sinopse: Bad City é uma cidade iraniana abandonada e sem leis, onde vivem diversos traficantes e prostitutas. Enquanto Arash (Arash Marandi) luta para sobreviver e para afastar o próprio pai do vício em drogas, a Garota (Sheila Vand) parambula pelas noites, com um segredo: ela é uma vampira, e mata seres solitários para saciar a sede de sangue. Quando os dois se encontram, as suas vidas se transformam.
Classificação: 18 anos
Distribuidor: Kino Lorber, Vice Media
Streaming: MUBI, Reserva Imovision
Nota: 6,5

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