CRÍTICA – A GAROTA DA AGULHA

CRÍTICA – A GAROTA DA AGULHA

O período entreguerras rendeu a muitos cineastas um prato cheio para retratar, por meio da arte, o impacto que este recorte histórico deixaria ao redor do mundo, incluindo mudanças sociais, econômicas e políticas. No longa A Garota da Agulha, dirigido por Magnus von Horn e representante da Dinamarca na categoria de Melhor Filme Internacional no Oscar 2025, inspirado em uma história real, acompanhamos a jovem Karoline (Victoria Carmen Sonne), que é refém de um destino cruel que parece inescapável. Sua vida toma um rumo ladeira abaixo pouco a pouco: seu marido está desaparecido nas trincheiras da Primeira Guerra Mundial, ela é despejada da casa onde mora por não ter condições de manter o aluguel. Como se isso não fosse ruim o suficiente, ela se vê diante de uma gravidez não planejada, é rejeitada pelo homem com quem se relacionou brevemente e perde o emprego. Quando seu destino se cruza com o de Dagmar (Trine Dyrholm), uma mulher mais velha que a ajuda nesse momento de infortúnios ininterruptos, a vida da moça muda completamente – para melhor ou para pior? Bom… antes de aprofundar a análise, adianto ao leitor possíveis spoilers.

A introdução de A Garota da Agulha é mais centrada num teor de drama, sendo bem firme e consciente sobre o que escolhe nos apresentar a princípio (embora vá perdendo consideravelmente essa segurança de tom com o avançar da trama). Sem pressa e com um ritmo um tanto plácido, a primeira metade do longa evidencia muito aquela Copenhague melancólica e fleumática pós-Primeira Guerra Mundial. A fotografia em um preto e branco bem contrastado é uma escolha estilística bem precisa para nos fazer mergulhar naquele mundo sem perspectivas, ora remetendo ao expressionismo alemão, ora nos transmitindo uma ótica quase documental, trazendo um tom sombrio que muito combina com a proposta da narrativa. Até mesmo o ambiente de trabalho da personagem nos é apresentado de uma maneira crua, remetendo ao automatizado, reforçando a precarização daquele trabalho desvalorizado, além do fato das pessoas daquela cidade exalarem uma certa indiferença ao sofrimento, como se tivessem normalizado a ideia de que a tragédia e a miséria são intrínsecas à existência – e nem se dão conta disso. É tudo muito frio e apático. Ainda que todo o contexto ao redor da nossa protagonista seja bem estabelecido, esta ainda nos soa um tanto enigmática, indecifrável.

Nesse sentido, ao acompanhar a trajetória em declínio constante de Karoline, não demora muito para nos darmos conta que ela possui uma personalidade um tanto misteriosa, tácita e fria, causando ao espectador um certo afastamento, dificuldade de identificação e, portanto, pouco apreço à personagem. Essa estruturação da psique da moça conversa bem com a história que acompanhamos, entretanto, o fato de não sabermos quase nada sobre seu caráter, seus feitos, seu senso de bondade e etc, nos gera um certo distanciamento da trama num todo. É como se estivéssemos acompanhando sua vida apenas para ver “onde vai dar”, não porque de fato nos importamos com ela. Em outras palavras, o contexto geral ao redor da moça acaba sendo o maior chamariz, não ela em si. Talvez porque haja um sentimento de indiferença tão constante no filme que contamine até mesmo ao espectador, já que o filme nos blinda de penetrar na mente de Karoline para entender qual redirecionamento ela gostaria dar à sua vida em meio àquele cenário cinzento. Quando seu marido desaparecido ressurge, carregando consigo uma terrível deformidade no rosto em consequência da guerra, a moça logo demonstra rejeição e negação em continuar ao lado daquele homem. É um tanto difícil não atribuir um breve julgamento moral sobre a crueldade de seu tratamento para com ele, visto que é impossível não se compadecer com a atual condição do rapaz, que por sua vez exala tristeza e vergonha, usando inclusive uma espécie de máscara para não revelar sua real face (face essa que mais tarde vira a motivação dele topar tornar-se uma atração de circo, mostrando o caráter vil das pessoas daqueles arredores, ao mesmo tempo em que deixa claro a ausência de perspectiva de vida do rapaz após carregar consigo as terríveis sequelas do inferno da guerra). Com isso, a reação imediata de Karoline beira ao desumano, nos despertando mais empatia pelo pobre moço do que por ela; entretanto, ao mesmo tempo, subentende-se que enquanto o marido enfrentava uma guerra física, em sua ausência, ela enfrentava uma guerra interna consigo mesma, com seus demônios, dúvidas, infelicidades, inquietações, em meio àquela realidade vazia. Ou seja, embora suas decisões pareçam ou de fato sejam arbitrárias e cruéis, aquela realidade pós-guerra submersa em depressão e desesperança deixa subjacente o quão deturpado deixara o olhar dos moradores daquele lugar sobre o mundo de forma geral, no nível da própria Karoline tratar de maneira desprezível a quem um dia amou. A essa altura, fica claro que a atmosfera lúgubre e melancólica só recrudesce à medida em que os horríveis acontecimentos se manifestam da garota, mas até quando essa frieza e indiferença continuarão fazendo parte do seu ser, mesmo diante do pior dos cenários? Até que ponto ela estaria disposta a flexibilizar sua moralidade em prol de sua sobrevivência?

Ainda nesse raciocínio, por mais que o filme pincele esse teor de um terror grotesco através do choque da aparência física de um dos personagens, ele deliberadamente acaba se assumindo como um terror social, uma vez que opta por escancarar as mazelas da guerra, sobretudo o quanto as mulheres sofreram por se verem sem poder de escolha, num beco sem saída (acima de tudo, as mães). A narrativa se sai muito bem quando sustenta sua base textual por esse rumo, todavia, de segunda metade do filme adiante, além de ser extremamente cru, o longa parece se perder ao tentar interligar os vários temas que tenta abordar, sem estabelecer um foco do arco principal da protagonista. Sendo mais clara, somos apresentados a essa seguinte cadeia de eventos: Karoline perde a moradia; perde o emprego; vê seu marido deformado e o rejeita; engravida de um homem rico que a rejeita por influência da mãe controladora; tenta um aborto; conhece Dagmar e descobre um macabro segredo – seria tudo isso uma sucessão de acontecimentos trágicos sem muito intuito a não ser a fetichização do sofrimento alheio? Afinal, qual seria a mensagem central e final por trás de tantos temas delicados? Adianto que o filme abrange muitos debates pertinentes acerca de vários assuntos sérios, isso é inegável, porém, ao bater muito nessa tecla de querer destrinchar a maldade humana sem trégua, acaba beirando ao cinema de choque, como certos filmes de Lars Von Trier ou Michael Haneke, por exemplo. Nesse sentido, o longa peca em não ter zelo suficiente para não ser confundido com uma obra que somente visa uma espetacularização gratuita da violência. A linha pode ser muito tênue.

A Garota da Agulha se sai bem, no entanto, ao provocar tópicos sobre maternidade, seja lá no início com a gravidez não planejada e com a agonizante cena da agulha, seja ao caminhar pra metade final, quando Karoline começa a trabalhar numa agência de adoção clandestina. Ela, que estava rejeitando a ideia de ter um filho antes e depois do nascimento desse, se vê numa missão pessoal de cuidar dos filhos de outras mulheres, tendo uma espécie de sentimento maternal sendo despertado genuinamente. Quem sabe aquele cenário repleto de pessoinhas tão vulneráveis e inocentes fosse o lampejo que faltava para senso de empatia ressuscitar, e também de enxergar que talvez ela estaria lutando contra esse destino de cuidar de uma vida por conta da realidade cruel na qual está inserida, não por vontade própria. Afinal, ser mãe solteira em meio a um cenário de miséria e abandono seria um cenário imensuravelmente difícil, não somente para ela, mas também para a criança, que iria vir ao mundo em condições precárias. Aliás, essa linha de pensamento certamente fazia parte da realidade de todas as outras mães que doaram seus filhos para a agência gerenciada por Dagmar, com a esperança das crianças serem bem criadas e cuidadas por pessoas com melhores condições de vida. O ponto é que mulheres sempre foram julgadas por qualquer prisma que envolva o assunto maternidade; seja a mulher que quer ser mãe, sendo “muito nova” ou “muito velha” para tal; a mulher que quer abortar; a mulher que resolve abandonar em meio a um desespero; a mulher que doa para que outro cuide… não há escapatória do julgamento alheio se tratando dos dias atuais, quem dirá em 1919?

Inclusive daí em diante, o filme, até então narrativamente afundado numa frieza incessante, ameaça manter um tom mais “leve” e esperançoso quando a protagonista conhece a misteriosa Dagmar, ao mostrar as duas bebendo juntas, indo ao cinema, dando risada, como se o destino de Karoline ainda tivesse algum resquício de salvação através daquela suposta nova amizade — tudo isso para o golpe do perturbador plot twist ter ainda mais impacto, visto que somos pegados desprevenidos com a trama indo do 8 ao 80. A revelação, no entanto, embora seja extremamente chocante, possui um desenvolvimento um tanto apressado em relação ao ritmo que estava sendo construído anteriormente, como se o filme quisesse acabar logo antes de perder o “frescor” do twist avassalador. É como se o diretor nos clamasse para ficar com a horrorífica cena da revelação ecoando pela nossa cabeça (e talvez tenha funcionado, infelizmente).

Em síntese, com uma atmosfera austera, um ritmo oscilante e uma barreira de maior possibilidade de vínculo emocional com os personagens (talvez sendo o marido de Karoline a única exceção, o que por sua vez não adianta muito, visto que ele não possui um arco devidamente bem concluído, sendo “esquecido” do meio para o final), o mérito do filme se atribui à estética impecável, às implicações acerca do tema maternidade e, sim, ao choque em relação ao plot twist dos bebês, tendo nossa empatia despertada pelo desespero de testemunhar o mais alto nível da atrocidade humana… talvez ver um filme com uma reviravolta avassaladora dessas é o empurrão para lembrar o quão não devemos confiar nas boas intenções de ninguém. A frieza narrativa juntamente com escolhas que beiram ao apelativo em alguns momentos quase faz o longa descambar para um teor mais polêmico do que reflexivo. Ainda assim, A Garota da Agulha é uma obra que incita interessantes provocações e inquietações ao público, por mais áspera e amarga que possa ser a experiência de assisti-lo. Vale a dica de tentar fortalecer o psicológico para encarar filmes com temáticas fortes como esse; porém nunca a nível de normalizar as atrocidades vistas, nem ficar apático e irreflexivo diante delas. Que nunca nos tornemos frios e indiferentes ao sofrimento alheio tal como a sociedade daquela Copenhague de 1919.


Filme: The Girl with the Needle (A Garota da Agulha)
Elenco: Victoria Carmen Sonne, Trine Dyrholm, Ari Alexander, Ava Knox Martin, Benedikte Hansen, Besir Zeciri, Joachim Fjelstrup, Per Thiim Thim
Direção: Magnus von Horn
Roteiro: Line Langebek Knudsen, Magnus von Horn
Produção: Dinamarca, Polônia, Suécia
Ano: 2024
Gênero: Drama
Sinopse: Karoline é uma operária que luta para sobreviver em Copenhague após a Primeira Guerra Mundial. Desempregada, abandonada e grávida, ela conhece Dagmar, que administra uma agência de adoção clandestina. As duas logo se tornam próximas, mas um segredo macabro muda drasticamente a vida de Karoline.
Classificação: 18 anos
Distribuidor: MUBI
Streaming: MUBI
Nota: 6,0

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