AFTERSUN

AFTERSUN

Filmes são, em sua totalidade, ouso dizer, experiências que guardamos ou descartamos completamente. A cada nova obra assistida, enquanto nosso catálogo mental aumenta, somos presenteados também com palavras, gestos e ações que nos tocam e marcam, seja de maneira agradável ou o oposto. Algumas dessas experiências levam tempo para sair de nós enquanto outras são completamente esquecidas. Aftersun (2022) de Charlotte Wells é uma dessas experiências permanentes, que se mantém dentro de mim até segunda ordem, enquanto vou digerindo e assimilando o que assisti.

Em Aftersun conhecemos Calum e Sophie, pai e filha que estão de férias passeando pela Turquia nos anos 90. Logo no começo do filme, assistimos à pequena Sophie, de 11 anos, perguntar a seu pai, que está para completar 31, como ele se imaginava no futuro quando tinha a idade que ela tem agora. Ela filma seu pai com uma câmera, mas ao invés de assistirmos à filmagem de Sophie, acompanhamos as reações de Calum, desconfortável com a pergunta, através do reflexo da TV de tubo presente em seu quarto. Desde essa cena é perceptível um certo desconforto pairando sobre esse jovem pai, interpretado por um talentoso Paul Mescal. Desde essa cena inicial, esse desconforto que acomete Calum vai crescendo rápido demais para os poucos dias de viagem que passam lentamente aos nossos olhos.

Em alguns flashes podemos ver uma Sophie adulta fazendo aniversário, muito provavelmente a mesma idade que seu pai durante a viagem, e vivendo sua vida de adulta, longe da despreocupada vida de uma criança de 11 anos. Ao lembrar dessas férias tão distantes no passado, Sophie tem “visões” de seu pai, e nelas ele se mantém da mesma forma de quando ela era uma criança, como se o tempo tivesse parado para ele ali, na despedida de fim de férias com sua filha. Assistimos aqui uma Sophie adulta que tenta se aproximar de Calum. Em um ambiente caótico e distorcido, ela abraça seu pai que parece distante em todos os sentidos.

Algo bastante importante sobre o filme de estreia de Charlotte Wells está no fato de que não há explicações para certos acontecimentos. É verdade que há, sim, uma foto que circula na internet da própria diretora com seu pai em férias na Turquia quando ela tinha mais ou menos a mesma idade de Sophie, e muitas vezes vi atribuída a essa única imagem todo o contexto do filme. Podemos deduzir, sim, que a narrativa construída em Aftersun se baseia em experiências pessoais de sua criadora, porém, temos aqui um trabalho artístico e ficcional, feito tanto para o público quanto para a própria Wells.

A narrativa de Aftersun segue Sophie e Calum de forma conjunta e separada. Podemos dividi-la em três partes, uma para cada um e uma para os dois juntos. A parte de Sophie é, talvez, a mais bem explorada. Aos 11 anos, ela se encontra em um ambiente onde não há pessoas de sua idade. Em uma fase bastante crucial de seu crescimento, ela escuta as conversas das pessoas mais velhas e observa tudo, moldando e endurecendo o olhar da mulher adulta que vemos nos flashes ao longo do filme. Sophie tem, durante a viagem, algumas experiências importantes e, ao mesmo tempo em que adentra o amadurecimento, pequenas faíscas de um eu infantil marcam presença em sua história, e a atuação da jovem atriz Frankie Corio é autêntica e cai muito bem à personagem.

Quanto a Calum, podemos ver duas versões do mesmo personagem. Ao mesmo tempo em que ele luta para não desmoronar – e o motivo para isso não fica claro e não é exatamente explicado –, na presença de sua filha ele tenta o seu melhor, ainda que nem sempre consiga atingir o objetivo. Existem momentos muito bem explorados dentro dessa relação levemente conturbada de pai e filha e a trilha sonora do filme, ainda que discreta, conversa com esses momentos. A cena em que eles estão no karaokê é desconcertante e emociona, simbolizando ali uma nova porta que se fecha nessa relação, uma pequena rachadura na confiança entre esses personagens.

Há, entre os dois atores principais, uma química bastante satisfatória. Juntos, eles trazem para a tela e para o espectador todo o sentimento presente em sua relação, dos erros, acertos e empates dessa dinâmica em que somente aqueles personagens estavam inseridos. Nós, de fora, assistimos, tentando entender o que se passou e ainda que não entendamos muita coisa, podemos nos sentir conectados e até mesmo parte da história. Talvez o ponto mais alto da narrativa criada por Charlotte Wells seja o de sua representatividade. A história de Calum e Sophie pode ser lida e assimilada por muitos espectadores e em sua aparente simplicidade podemos repousar nossas próprias experiências, criando um vínculo com a obra.

O trabalho de estreia de Charlotte Wells se mostra uma grande aposta para a temporada de prêmios esse ano, guardando seu lugar entre grandes nomes já assentados e reconhecidos na indústria. Não é de se surpreender que a narrativa de Wells tenha sido tão bem recebida tanto por público quanto pela crítica. Aftersun, que se destaca como um dos melhores filmes de 2022, já faz parte do imaginário dos cinéfilos e muito se tem comentado sobre o filme, que acaba de chegar ao catálogo da Mubi Brasil.

Não há dúvidas de que Aftersun é um filme altamente recomendável, sua história dificilmente irá desagradar alguém. É claro que existem exceções, porém, vale dizer que a experiência de assisti-lo é de 100% de aproveitamento. Todo o desconforto, o constrangimento e a melancolia das cenas apresentadas no filme valem totalmente a pena. Poder acompanhar Calum e Sophie nessa pequena viagem à Turquia é uma experiência sensorial e sentimental, daquelas para se guardar no coração e na mente.


  Filme: Aftersun
Elenco: Paul Mescal, Frank Corio
Direção: Charlotte Wells
Roteiro: Charlotte Wells
Produção: EUA, Reino Unido
Ano: 2022
Gênero: Drama
Sinopse: Em um resort decadente, Sophie, de 11 anos, aproveita o raro tempo com seu pai amoroso e idealista, Calum. Vinte anos depois, as lembranças de Sophie de suas últimas férias se tornam um retrato poderoso e doloroso do relacionamento deles.
Classificação: 14 anos
Distribuidor: O2 Play
Streaming: Mubi Brasil
Nota: 9,0

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