CRÍTICA – CRIATURAS DO SENHOR

CRÍTICA – CRIATURAS DO SENHOR

Estrelado por Paul Mescal – ator queridinho do momento (Normal People e Aftersun) – e Emily Watson, atriz com um currículo extenso, do qual cito os filmes Laranjas e Sol (2010), As Cinzas de Ângela (199) Hilary e Jackie (1998) e, também, a série super aclamada da HBO, Chernobyl (2019), Criaturas do Senhor é um longa dirigido e roteirizado por três mulheres e um homem. Saela Davis e Anna Rose Holmer dirigem o filme enquanto que Fodhla Cronin O’Reilly e o jovem Shane Crowley assinam o roteiro. O primeiro aspecto interessante do filme é o fato dessa equipe, majoritariamente, composta por mulheres debruçarem com muita propriedade sobre a malignidade masculina.

O longa se passa na Irlanda em um vilarejo a beira mar. Percebemos já no inicio e de maneira muito clara que o mar é a fonte de sustento daquele lugar. Os homens ocupam o espaço da pesca – mesmo que não saibam nadar –, enquanto às mulheres ficam com a seleção, limpeza e descarte dos peixes. Há uma estrutura muito bem consolidada naquela comunidade. Todos possuem suas funções e não há ninguém que pense, de fato, em fazer algo diferente. Em determinada cena, em uma rodinha de mulheres, elas percebem que mesmo podendo imaginar algo diferente para as suas vidas, a realidade se sobrepõe sempre – quase que em um pensamento de que sonhar não vai levar ninguém a lugar algum.

Em poucos minutos uma tragédia para uma dessas mulheres nos leva a uma verdadeira constatação do que é sororidade. Aquelas mesmas quatro mulheres que conversavam trivialidades no intervalo do trabalho, agora dividem a tela em uma sala apertada e silenciosa, em um tom amarelo âmbar/alaranjado (tons de muitos significados dentro do cinema) que empresta à cena tanto a ideia de sofrimento quanto a de amizade/apoio/suporte. As diretoras vão ainda mais além nessa composição quando colocam a personagem que sofre pela perda de seu filho no centro das outras três personagens, construindo assim a ideia de total amparo.

Embora haja esse indicativo de esperança por parte das manifestações naturais das personagens femininas, o clima do filme, muito bem estabelecido através da trilha sonora sombria e também pelo som das ondas do mar trazendo sempre o medo pelo desconhecido, preenche o filme por completo. Estamos sempre a esperar algo de ruim acontecer. Nesse sentido tanto o roteiro quanto a direção são muito eficientes, pois o clima tenso se estabelece logo no início do filme e perdura até as últimas cenas.

A chegada de Brian O’Hara (Paul Mescal) naquela cidade, naquele momento, é sentida como extremamente inapropriada. O filme constrói, de forma muito rápida e eficiente, essa relação de incomodo com aquele personagem. Vemos no olhar de sua mãe, Aileen O’Hara (Emily Watson), esse conflito entre a alegria de ter seu filho de volta e a preocupação por sentir algo de errado ali.

Mesmo com poucas palavras, com pouco contato físico, é possível notar como o zelo de mãe é inabalável. Mesmo sem ter tido noticias por um longo tempo – o filme não deixa claro o que aconteceu com Brian, estabelecendo, assim, ainda mais dúvidas em cima desse personagem –, seu lado materno fala mais alto e, nesse primeiro momento, a vemos fazer tudo o que uma mãe amorosa faria. Mescal e Watson estão ótimos em seus papéis. Mesmo dentro do minimalismo das suas ações e movimentos, eles conseguem transpassar todas as emoções que sentem.

A forma como cada mulher aqui é pensada passa por algo comum a todas elas que é o “sentir” e, embora elas compartilhem de muitas coisas em comum neste filme, é perceptível que as três principais personagens femininas possuem suas próprias camadas. Aileen é uma mãe, trabalhadora, mas que preza muito o lar e sua família. Sua filha, Erin O’Hara (Toni O’Rourke), também já é mãe e tem suas próprias demandas. E aparentemente sabe como sua família lida com certos assuntos e, por isso mesmo, sempre a vemos meio afastada desse laço, tendo contato somente com sua mãe. Já a jovem Sarah (Aisling Franciosi) é quem sofre mais e quem mais demonstra resiliência.

As mulheres do filme sofrem, principalmente, pelas ações dos homens, direta ou indiretamente. E nesse ponto é que há uma certa névoa, pois a todos os personagens masculinos, em maior ou menor grau, é pressuposto um nível de violência, ora velada ora escancarada. E o que torna tudo pior é o corporativismo. Se por uma lado temos mulheres exercendo a sororidade para, juntas, aliviarem a dor de quem está a sofrer, do outro lado vemos uma verdadeira unidade machista e misógina com o intuito de esconder a verdade para preservar um dos seus.

Em certo momento, em um diálogo entre Sarah e Aileen, a jovem tenta justificar as atitudes de seu ex-companheiro afirmando que todos são iguais, todos são criaturas do Senhor. O roteiro traz esse choque de realidade quando coloca mulheres, de certa forma, aceitando o que acontece a elas como resposta divina ou pelo simples motivo de “ser assim”.

O longa não se coloca a estudar muito sobre os diversos elementos que constituem a personalidade de cada personagem. Muitas coisas serão deixadas para o publico decidir sob que viés olhar. Naturalmente iremos fazer nossas escolhas, mas passaremos pelo mesmo momento de dúvida que Aileen passa. Afinal ela é a protagonista e o filme nos limita de informações tal qual faz com esta personagem. Por vezes o trabalho das diretoras é tão assertivo que enxergamos através dos olhos de Aileen e, assim com ela, tentamos encontrar as respostas que parecem estar ali, bem em nossa frente.

Essa qualidade na direção é vista também ao conseguirem manter um estado de tensão elevado sem que, para isso, precisem, a todo momento, renovar o sentimento de dúvida ao qual o filme se apega. Mesmo não tendo grandes alternâncias de emoção, o filme todo se estabelece em uma crescente, mesmo que vagarosa, e ao chegar ao seu clímax, a sugestão é muito mais enraizada do que a exposição.

Criaturas do Senhor fala abertamente e de modo objetivo sobre a toxicidade masculina e em como ela é facilmente vendida como sendo algo natural e que pode ser relevada. No entanto o filme traz, também, o sofrimento causado por cada uma dessas atitudes. Da menor a maior. Da mais simples a mais grave. Há, evidentemente, pesos diferenciados para cada um destes temas, pois é nítida que há uma intenção das diretoras e dos roteiristas em fazer com que enxerguemos através da ficção o que ainda acontece fora das telas.


Filme: God’s Creatures (Criaturas do Senhor)
Elenco: Emily Watson, Paul Mescal, Aisling Franciosi, Toni O’Rourke, Declan Conlon, Marion O’Dwyer, Brendan McCormack, Isabelle Connolly
Direção: Anna Rose Holmer, Saela Davis
Roteiro: Fodhla Cronin O’Reilly, Shane Crowley
Produção: Irlanda, Reino Unido, Estados Unidos
Ano: 2022
Gênero: Drama, Suspense
Sinopse: Em uma vila de pescadores varrida pelo vento, uma mãe está dividida entre proteger seu filho amado e seu próprio senso de certo e errado. Uma mentira que ela conta para ele despedaça sua família e a unidade de sua comunidade.
Classificação: 14 anos
Distribuidor: Califórnia Filmes
Streaming: Indisponível
Nota: 7,0

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