Alguns filmes têm um tempo próprio para sair da gente e retirarem-se, mais ou menos lentamente, dos olhos que o assistiram acontecer. O filme sai então de uma posição passageira, na qual apenas se projeta numa tela e adentra uma dimensão na qual se aproxima mais de um fato, de uma sensação, estado com características próprias. Com uma lógica além e aquém do nosso tempo-espaço. Quase uma coisa em si, algo independente do nosso olhar. Filmes assim são raros, é fato. Para sair deles, não basta levantar-se com a consciente intenção de acordar do mergulho nas películas. Sair do útero não basta. Quando tornamos um filme tão potente assim, observamos o mundo como “uma criança se, ao nascer, reparasse que nascera deveras” (Alberto Caeiro-Fernando Pessoa). Mas não é como se não conhecêssemos as lógicas, o tempo e os espaços que se apresentam como fatos coerentes e frequentes diante de nós. Mas sim como quem está preso a uma memória íntima. Uma música toca ao fundo (não raro se trata de um condescendente silêncio); a paisagem é uma, mas depois da menor piscadela ou ao adentrar na hora certa determinada esquina, retornaremos ao lugar no qual por tão pouco e tão longo tempo construímos uma casa. Não haveria conflito entre os mundos porque são um só. Aliás, é uma reconhecida promessa.
Logo após assistir “Até os Ossos”, cogitei defini-lo apenas com as palavras que escrevi acima. Após horas, dias, assumi as lupas, coloquei a mim e ao filme no divã ou nalgum laboratório com um microscópio que me permitisse perceber que “Até os Ossos” é, resumidamente e sem spoiler, a história de dois jovens que se conhecem devido a uma característica em comum dolorosa. Algo absolutamente peculiar que os torna monstros irreconhecíveis desprezados e indesejados para todo o mundo. A identificação com outrem é inalcançável. Eles têm suas regras específicas, fantasmas insuperáveis e amor, claro, amor irremediável. Os jovens saem pela estrada dos EUA como se fossem autossuficientes buscando descobrir quem são. Não demora até perceberem que só têm um ao outro. É, como eu disse, uma promessa reconhecida. Ou seria um combo delas?
Podemos começar percebendo a promessa macro que nos diz: Estados Unidos da América, o lugar onde reina a liberdade. Lá com quaisquer cem dólares você pode decidir meter o pé na estrada e sonhar livremente bem distante das pressões que te atormentam. Nos EUA, é possível ter dignidade com pouco e ser muito feliz. Depois de pagar gasolina, comer, se divertir e trocar de roupa com cem milagrosos dólares, você pode conseguir emprego numa cidadezinha qualquer quando te der vontade de “ser como eles e brincar de ser chato e normal”. Porém, a tal terra da liberdade é uma invenção potente e antiquíssima. Os EUA e o Brasil são, cada um em seu grupo, países líderes em desigualdades. Notoriamente, isso não quer dizer que as realidades dos dois países sejam semelhantes em tudo. Afinal, os EUA são um império com muito mais armas do que o mesmo permitiria ao Brasil ter. E o que quero afirmar é que em todo império há uma maioria numérica e ela é composta de plebeus. “Até os Ossos”, como a maior parte da munição do primeiro exército estadunidense, o Cinema, nos guia para uma grande e reconhecida alienação desse fato.
A segunda promessa age no micro, é íntima. Ela age sobretudo como um sonho contado afim de alimentar um delírio. Como já resumi, “Até os Ossos” conta a história de dois jovens tão mas tão ensimesmados que se consomem. Veja, são vistos pelo mundo como anormais, raros. Eles se conhecem, se amam, alcançam a glória e dividem seu cortejo de horrores sempre juntos. Em dado momento eles se afastam, como exige a Jornada do Herói. Mas logo voltam a se amar depois de quase se perderem nessa imensa Terra. É a história dos sonhos inventada por todas as histórias de romances que lemos, assistimos ou simplesmente nos habitam. Freud, Lacan e até mesmo tiktokers que flertam com o senso comum já dizem muito sobre. É algo íntimo, profundamente individual e ordinário. “Até os Ossos” concentra-se tanto na individualidade que a mesma provoca um choque entre as personagens e até chega a ser apresentada visualmente: estão tão concentrados em si mesmos que se consomem. De forma simbólica, é o ápice do Narciso. A pessoa se afaga tanto pelas pedradas que levou do mundo que se fecha apenas em si mesma e em dado momento começa a se bastar sem perceber, ou chegando a recusar, que existe uma coletividade de semelhantes.
Há no cerne disso todo o individualismo proposto e ironicamente furtado pelas ideias e práticas ultraliberais que tem os EUA como principal bastião e representante simbólico. Analisar comportamentos, encontrar padrões e usá-los sem pleno consentimento das cobaias e buscando enriquecer, é um hábito tão comum aos EUA que já foi banalizado. Vide a Cambridge Analytica e o favor prestado aos EUA pela garantia da sua hegemonia cultural ao redor do mundo através da manipulação dos desejos de pátrias inteiras. Paira sobre isso o medo de que tornassem-se mátrias ou simplesmente recusassem as práticas e ideias ultraliberais. Recomendo o filme Realidade Hackeada.
A partir de uso semelhante ao feito pela Cambridge Analytica dos nossos dados, empresas e fabricantes nos vendem cada vez mais objetos que representam ideias feitas sob falsa medida. Tudo ao redor sinaliza que através da obtenção de um objeto nos aproximaremos de um ideal, de imagens, narrativas e símbolos que admiramos. Em tese, poderíamos finalmente chegar lá. Lá onde todos e todas nós vemos nas telas alguém chegar. Num lugar que, das mais variadas formas e modos, aprendemos a querer estar. É através do contato e da análise de gatilhos inconscientes que impérios percebem padrões e apresentam mercadorias que manipulam nosso querer de tal forma que não lembramos da possibilidade de sonhar outros sonhos.
É por isso que “Até os Ossos” tem a capacidade de entrar no nosso olhar: o filme apresenta símbolos fortíssimos para o inconsciente do público em geral e não apenas do jovem, carente e/ou inseguro, como afinal é o de grande parte do público ao qual o filme se destina ou “público destinado a gostar do filme”. Mesclando a potência de um império e suas promessas com a fragilidade e carência humana, o filme nos conquista. Nesse sentido, o roteiro é impecável. Na Fotografia, quase não se percebe o uso do zoom precisamente utilizado em determinados planos. Alguns deles, não sei por que, me lembram alguns filmes do Cinema Novo Brasileiro. O Som é ameno. A Montagem faz o que o modelo de filme exige: ágil ambientação e corrida quase frenética para manter atenta a geração TikTok que, na verdade, é antes de tudo descendente da geração do ritmo galopante sustentado por Hollywood desde o século passado. Aliás, vale ressaltar que o ritmo do filme não se dá através da apresentação de fatos surpreendentes a cada cinco ou três minutos, mas sim através do pouco respiro entre os acontecimentos apresentados. Há uma diferença sutil e significativa aí. Não são necessariamente novidades que surgem. Até porque “Até os Ossos” nos mergulha em um sonho preestabelecido, já fabricados que são sim nossos. Ora semeados por mãos indignas, ora pelas nossas próprias mãos educadas. Sobre tudo isso, já foi dito: “Cinema é paixão e comoção”.
Filme: Até os Ossos (Bones and All) Elenco: Timothée Chalamet, Taylor Russell, Mark Rylance Direção: Luca Guadagnino Roteiro:David Kajganich Produção: EUA, Itália Ano: 2022 Gênero: Drama, Romance, Terror Sinopse: Até os Ossos é a história do primeiro amor de Maren (Taylor Russell), uma jovem mulher aprendendo a sobreviver à margem da sociedade, e o intenso Lee (Timothée Chalamet), um andarilho sem amarras… Eles se encontram e se unem numa odisseia de mil e quinhentos quilômetros por estradas secundárias, passagens ocultas e alçapões dos EUA. Mas apesar de seus esforços, todas as estradas os levam de volta aos seus passados traumáticos, e a uma reta final que vai determinar se o amor deles pode sobreviver às suas diferenças. Classificação: 18 anos Distribuidor: Warner Bros Streaming: Indisponível Nota:8 Disponível 1 de dezembro nos cinemas |
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