Durante passagens musicais, com folk ou um rock suave, existe um clima que é simultaneamente inquietante e aconchegante no Guerra Civil da A24. Ao mesmo tempo que cruzamos uma américa massivamente fragmentada e distópica (culminando numa atmosfera intensa), alguns momentos de sutileza aproveitam para indiretamente existir.
Como não poderia deixar de ser, a seleção de filmes da A24 é diferenciada porque na maioria de suas obras somos imersos em um clima único. E desta vez, o cineasta Alex Garland (que ganhou notoriedade após Ex Machina) tem a oportunidade de elevar a escala que era até então vista dentro da distribuidora. Promovido como “blockbuster da A24”, Guerra Civil é uma das entradas mais imersivas dos últimos anos, e como já diz o ditado: quanto maior a tela, maior a imersão.
Logo, sejamos diretos. O filme será divisivo, e cá está a razão: na distopia de Garland, não nós é dada a mínima explicação em relação ao que motivou a guerra, ou o que cada lado defende. Sequer contexto nos é dado. Mas claro, Garland não tirou a ideia por conta própria. Se nosso Brasil acaba inconscientemente reproduzindo o desenrolar político estadunidense, é certo de que a nação norte-americana também está rachada. E ironicamente, os dois estados que unem forças bélicas são justamente os dois estados mais divisivos dentro dos EUA atual: Califórnia e Texas. E a sacada é essa: nem citar termos como esquerda ou direita; o posicionamento do filme é a imersão, e apenas ela. Não importa como os Estados foram Desunidos, e sim como explorar as consequências desse abismo.
Ao adotar jornalistas como protagonistas, não há nem mesmo qualquer discurso enaltecendo o jornalismo. Como dito, o interesse de Garland é no registro, seja no registro diegético dos fotojornalistas (ou seja, nas câmeras dentro da trama), seja na linguagem cinematográfica integrada (a maneira com o que o filme é captado). Com isso, nota-se que vale mais como o filme é formalmente idealizado, do que seu discurso teórico.
E ao falar em idealização, é imprescindível que houvesse uma execução primorosa para que tudo fosse coerente. E é o que vemos: ideia seguida de maestria na hora de finalizar. O tripé base começa pela estética documental ficcional – que torna cenas de conflito genuínas e ainda mais chocantes, seguido pela exuberante e sóbria fotografia que ganha autoralidade justamente pela naturalidade pouco estilizada, e por último e não menos importante, o trabalho do montador / editor britânico Jack Roberts.
Voltando ao que há de “aconchegante” em Guerra Civil: o elenco. E quanta química ali. Nosso quarteto de jornalistas guinados por Lee, vivida pela inigualável Kirsten Dunst, cruza metade da fragmentada América visando realizar uma importantíssima entrevista. Lee é uma mulher tão acostumada com os choques que já registrou ao longo de sua carreira que, exausta, não parece mais se chocar com nada. E não que ela tenha se dessensibilizado, já que ao conhecer Jessie (Cailee Spaeny), uma jovem fotojornalista iniciante que quer seguir seus mesmos caminhos, uma bela parceria é formada. Já a voz da experiência pertence ao carismático velhinho Sammy, vivido pelo adorável Stephen McKinley. Sua confortante presença é emocional e ao mesmo tempo uma bússola de sensatez. E para fechar, nosso querido Wagner Moura arrasa e mostra demasiado controle para se consolidar em outras obras dessa magnitude.
Ainda nos respaldos da discussão iniciada por “Godzilla: Minus One“, quanto a iniciativa de blockbusters menos caros e com mais liberdade criativa, Guerra Civil custou $50 milhões e promove ótimas configurações, como o início da parceria da A24 com as salas IMAX, denotando seu caráter de evento enquanto ainda é uma obra com princípios autorais. Foi também filmado com câmeras inéditas, as Ronim 4D, bem menores, mais portáteis e auto estabilizantes, ao mesmo tempo que geram a sensação de câmera na mão de alta resolução, reforçando a verossimilhança e o realismo, com tracking-shots levemente trêmulos e ainda assim estáveis, proporcionando uma imersão tênue e de tirar o fôlego. Os limites do quadro, em um meio crível e estimulante, nos chantageiam a participar até o fim junto aos personagens das frenéticas e constantes tentativas de fuga e acesso a locais de difícil acesso.
Dada tais configurações, temos até uma discreta metalinguagem nas sequências de ação, já que, assim como os fotojornalistas captando sangue e bombardeios através de suas lentes, o espectador, capturado por esta cativante linguagem proporcionada, acaba acometido e feito de refém pela mesma ânsia pela documentação e pela desejo estético em meio ao caos. Afinal, o ser humano tem um desejo oculto insaciável pela tragédia, e as fotografias, apesar de muitas vezes sínicas, não são tão exacerbadas a partir do momento que estará atendendo a uma grande massa.
O “direito” de se filmar corpos sem autorização torna a figura do fotojornalista no filme fantasmagórica, como se a necessidade do registro permitisse uma isenção moral. Nessa imersão, ficamos à mercê dos quase sacrifícios em prol de singelas porém significantes fotografias, às vezes, revelando apenas a morte e nada mais. Acabamos postos como antagônicos nessa jornada, como observadores que consomem, através da tela do cinema, outras pessoas gerando consumo escatológico da vida humana, também como insensíveis captadores, que em bela analogia, têm suas câmeras manuseadas como armas. O filme também não abre demagogias quanto a heróis ou tirânicos. Tudo é inserido de forma apolítica, em tom de registro.
O que mais chama atenção é a decisão estética de alternar rapidamente as filmagens não diegéticas com os negativos das fotos tiradas pelos personagens. A edição, ou seja, a manipulação e sobreposição destas cenas, chega a ser esplêndido, em alto nível sensorial, ainda mais quando combinado com os arranjos sonoros marcantes que o filme dispõe.
Todavia, se a edição é um arraso a parte, o mesmo não se diz da montagem, que pode ser vista como o ponto menos efetivo do longa. Se as cenas em si são maravilhosamente bem ensaiadas na pré e bem configuradas na pós produção, as mesmas acabam surgindo e concluindo-se de forma abrupta. Ou seja, a montagem acaba segmentando e tornando o avançar pouco furtivo, em prol de uma construção em blocos, e isso acaba desestabilizando o ritmo, e em alguns casos, impedindo a tensão de circular ininterruptamente ao longo do todo. E ainda mais para um filme de estrada, acaba não sendo original a iniciação e resolução de conflitos dessa forma episódica. Ainda, este ponto negativo não se classifica exatamente como um “contra”, e sim como uma oportunidade desperdiçada de tornar tudo mais interligado.
Felizmente, o filme é muito carregado dramaticamente. Saímos doloridos da sessão. Os traumas que a Jessie passa ao decorrer e a formação de sua maturidade fazem parte do arco mais profundo. E, de muito bom grado, momentos contemplativos ao ponto se mostram importantes. Em especial, uma que envolve faíscas ao anoitecer – e por falar em faíscas, é fantástico como tiros noturnos remetem a fenômenos pitorescos no céu, como estrelas cadentes.
Por fim, Guerra Civil acaba sendo uma obra polêmica, mas de imersão considerável. Possui personagens envolventes inseridos numa atmosfera memorável e conduzidos por uma direção diferenciada. E seus 20 minutos finais são o mais absoluto cinema. São 20 minutos que não te deixam respirar.
Filme: Guerra Civil (Civil War) Elenco: Kirsten Dunst, Wagner Moura, Cailee Spaeny, Stephen McKinley, Jesse Plemons, Nick Offerman e Nelson Lee. Direção: Alex Garland Roteiro: Alex Garland Produção: EUA Ano: 2024 Gênero: Suspense, Ficção Científica, Drama, Aventura Sinopse: Em um EUA distópico, um grupo de jornalistas atravessa o país em meio a uma guerra civil em busca de realizar uma importante entrevista. Classificação: 14 anos Distribuidor: A24 Streaming: Indisponível Nota: 9,0 |