CRÍTICA – POSSESSÃO

CRÍTICA – POSSESSÃO

Possessão é daqueles filmes que constroem sua identidade pelo estranhamento e desconforto. Considerado ícone do cinema underground e cult, ganhou recente fama por uma onda de vídeos comentando sobre suas variadas interpretações e pelos infindáveis vídeos buscando explicar pelos miúdos cada nuance, simbologia oculta e segredos que permeiam seu roteiro, imagens e produção.

ANTES DA LEITURA – é sugerido a prévia experiência com o longa-metragem para evitar uma intoxicação da sua interpretação sobre. É desafiador, havendo sempre a possibilidade de sair entendendo menos do que quando começou, mas vale sempre o exercício da liberdade entender da sua própria maneira e superar os desafios de uma arte que muitas vezes se torna simplista demais.

– Essa não é uma crítica com a intenção de explicar e solucionar todos os mistérios e meandros da narrativa de Possessão. A arte é livre para interpretar. São reflexões, com referências e inferências sobre o longa-metragem, gerados a partir de uma visão pessoal –

É difícil saber por onde iniciar o texto com os tantos diferentes espectros que o filme possui. Assim, escolho introduzir primeiramente pelos elementos técnicos para posteriormente reaproveitar tais tópicos para realçar as reflexões e interpretações geradas ao longo do filme.

O elenco de protagonistas – Mark (Sam Neill) e Anna (Isabelle Adjani) – compõe grande parte das cenas do longa-metragem. Vale citar que todo o elenco secundário: Heinrich (Heinz Bennent), Mãe de Heinrich (Johanna Hofer), Bob (Michael Hogben), Margit (Margit Carstensen), Detetive (Carl Duering) – como podem ver são poucos os personagens e muitos nem mesmo dispõe de nomes – auxiliam na sensação de estranheza que perdura ao longo do filme todo e somente cresce. As atuações são exageradas, levadas ao máximo, nunca havendo pés no chão desde o seu início. E graças a essa escolha, a aura de confusão do filme e simultaneamente a imersão naquela realidade distorcida e histérica são realçadas ao máximo. Não existe um momento que nos sentimentos com os pés no chão, as atuações principalmente de Sam Neill e Isabelle Adjani brilham em níveis incríveis, deixando boquiaberto qualquer um que aprecie boas atuações quando são jogadas dentro de um ambiente que se distancie de qualquer normalidade.

A fotografia do filme promove também a sensação apocalíptica, tal qual as escolhas movidas por David Lynch em Eraserhead (1977). A cidade é opaca, cinzenta, sempre coberta por nuvens, os prédios parecem vazios, não há um singelo momento que nos libertamos da sensação claustrofóbica donde a narrativa se ambienta. Basta lembrar que o tempo inteiro o filme nos relembra do contexto de Guerra Fria, em uma Alemanha dividida pelo Muro de Berlim que aparece em diversas cenas. Seres humanos divididos, sobre uma provável paranoia nuclear – medo que já foi explorado aqui nas críticas de Threads (1984) e Miracle Mile (1988) – em um mundo que nada de “normal” exista. A fotografia puxa isso, pelas pichações, pelos grafites, pelas paredes rachadas, pela prisão que aquele mundo é rodeado. As personagens visam uma normalidade, visam transformar o estranho naquilo que é padrão, ignorando toda desgraça que é projetada. É um diálogo com a atualidade, afinal, não foi nisso que acabou sendo feito por todos nós durante uma pandemia global? Não é necessário buscar uma referência de normal dentro de um contexto apocalíptico? (Guerra da Ucrânia, Guerra de Israel, Colapso Climático). Na realidade de Possessão o mundo cheira histeria, cheira há tudo que visamos fugir.

Assim, somos jogados nessa realidade sem muito contexto introdutório, com muitas informações da narrativa já caminhando sem um narrador ou personagens explicando-nos o antes e às vezes nem mesmo o depois. A histeria caminha junto da própria maneira do filme se comunicar com o público. Talvez a confusão, estranhamento, desconforto sejam propositais em sua montagem (roteiro, fotografia, edição) para o próprio público ser jogado na desgraça silenciosa de possessão, que ao mesmo tempo grita ao máximo através das discussões das personagens é dado aos silêncios paranoicos das ruas e dos olhares paranoicos.

A narrativa de Possessão é na cidade Berlim, no meio da Guerra Fria, onde a personagem de Mark retorna de uma viagem à trabalho – em que ele parece ser uma espécie de espião – e, consequentemente reencontrando sua família. Mas, de cara, as coisas não parecem estar exatamente do jeito que imaginava. Anna diz não estar segura de suas escolhas. É um casal em crise, um casal não mais sintonizado.

Cada um possui as próprias expectativas. E tudo é explicitado, por apenas um diálogo entre Mark e Anna na cama após uma provável tentativa frustrada de se relacionarem sexualmente:

 

“Precisamos ser francos” – Anna.

“É uma dificuldade” – Mark.

“É uma dificuldade?” – Anna.

“Eu não estive muito presente, mas vou terminar esse trabalho e isso acabará” – Mark.

“Talvez eu esteja pedindo muito” – Anna.

“Sou eu que tenho o direito de pedir alguma coisa” – Mark.

“Eu sei” – Anna. 

“Não, não sabe. Nem sei por que disse isso” – Mark.

“Você me traiu?” – Anna.

“Sabe, não de verdade. E você?” – Mark.

“Não” – Anna.

“Sempre há alguém quando essas coisas acontecem” – Mark.

“Não nesse caso!” – Anna.

“Então não é isso. O que aconteceu conosco foi apenas sentimentos naturais que se modificaram. Mas sem você eu não sentiria nada” – Mark.

“O que você sente agora?” – Anna.

“Está realmente interessada?” – Mark.

“Não” – Anna.

“De todo modo, isso acontece comigo também. Não tenho vontade de saber” – Mark.

 

Esse é aquele diálogo que na sua aparência superficial quase não diz nada. Mas, é justamente o contrário. Todo o sentimento das personagens, daquele mundo, das psiques internas e das psiques externas dos coletivos que formam a narrativa, são expostos nesse excerto. As personagens possuam suas expectativas, que serão exaltadas ao longo da narrativa.

Mark quer uma esposa ideal. Não questionadora. Que faça as tarefas diárias da casa. As refeições. Cuide da criança. Faça sexo quando ele estiver com vontade. Quer uma mulher submissa.

Anna quer um parceiro sem os compromissos. Sexo com tesão e sem exaustão. Não se vê presa nas rotinas de uma esposa submissa. Quer cuidar do filho, mas com as tarefas divididas. Não se vê presa naquela realidade de cuidar de uma casa.

Há um conflito de interesses. E, por mais que ela puxe a questão de serem francos um com o outro, não existe vontade – que é o momento aliás de maior franqueza das personagens no diálogo – de ouvirem o interesse um do outro. O atrito principal deles reside aqui, talvez daquela própria realidade narrativa como um todo: quem está de fato expondo suas vontades? E, quando elas são expostas (de maneira direta ou indireta) são gerados os conflitos. As personagens possuem segredos que o próprio público não tem acesso:

  • Com o que Mark verdadeiramente trabalha?
  • Qual o contexto da relação anterior entre Mark e Anna?
  • Mark e Margit (melhor amiga de Anna) tiveram algum caso anterior?
  • Qual era a vida de Anna antes de todos os eventos narrativos?

Esses são somente alguns exemplos de questões que se manifestam ao discorrer da narrativa, que por muitas vezes é respondida de maneira subtextual, deixando muito mais para nós (público) formular respostas e tapar os buracos. Esse é um ponto crucial para muitos que irão comentar e criticar o filme enquanto falha: é demasiadamente misterioso, com muitas explicações deixadas de lado. Mas, ressalto que é de longe um provável ponto enfraquecido por abandonar por completo o papel do público. Não estamos diante de uma proposta narrativa que anseia por dar respostas. Não é um thriller policial ou muito menos um filme de terror que visa entregar plot twists e reviravoltas. É uma experiência muito mais sensorial, estética, plástica. Os visuais se encarregam de entregar símbolos semióticos que abrem portas para a interpretação. Basta prestar atenção não somente no que é dialogado, mas, também em como é dialogado. Nas viradas de olhos, nos sorrisos, nos comportamentos. Esses pontos são reforçados justamente por conta das atuações exageradas das personagens, que realçam suas vontades e pensamentos internos (por mais que não sejam verbalizados).

O amor acaba ganhando conotações fanáticas. O amor – quase que literalmente – é monstruoso. Ter um relacionamento não é romantizado de forma alguma, denotando um texto que realça muito mais os aspectos conflituosos do compromisso com outra pessoa, das correntes éticas e morais e, principalmente das expectativas que são impostas de uma personagem sobre a outra. Nossos protagonistas caminham por referências distantes, por pontos de vistas inteiramente divergentes.

Cena: restaurante.

Esse momento exemplificado pela imagem ressalta esse ponto. Estão juntos, mas em assentos opostos. Encontram-se em uma encruzilhada com destinos diferentes. Ambos estão presos em seus fanatismosfetichesvontadesanseiosexpectativasprojeções completamente pessoais, em nenhum momento buscando conciliação. O amor não possui espaço no filme, é uma sensação de que esse sentimento é brutal, decepcionante, frustrante e opressivo. Não é libertador, mas, aprisionante. A realidade ficcional da narrativa em nenhum momento irá aliviar essa significado da emoção. Não poderíamos chama-lo de pessimista, afinal, não é uma realidade ficcional narrativa que dá aberturas para uma manifestação divergente ou que em algum momento narrativo vá contradizer essa interpretação simbólica das relações humanas. Como já foi dito. É um mundo paranoico, enlouquecido, onde busca tratar com normalidade aquilo que está longe de ser nossa referência de normal. Considere que ao longo de todo o filme existem muitas cenas de discussão, muitas cenas absurdas de comportamentos que muitas vezes são testemunhados em público ou espaços de convivência. Ninguém reage, ninguém esboça parar os absurdos promovidas pelas personagens – em discussões calorosas ou em comportamentos que culminam em violências físicas. Parece que ninguém está ligando. Os teóricos vizinhos de apartamento de Mark e Anna nunca se manifestam sobre o tanto que eles gritam e discutem. É um mundo solitário, de silêncios e de não reatividade com toda loucura. Talvez as outras personagens que não existem – os vizinhos, os garçons, os transeuntes nos espaços públicos, os outros clientes do restaurante – estejam vivendo os mesmos dramas que as protagonistas. Uma busca pela normalidade dentro de um mundo que não está nada beirando ao normal.

Enfim, chega-se no tópico de maior relevância, afinal, Possessão é considerado um clássico cult do gênero de Terror. É possível classificá-lo como terror cósmico – que parte das referências estratégicas narrativas elaboradas principalmente pelo autor e possível criador do gênero na literatura H. P. Lovecraft, que inclusive se denomina aos terrores que tocam em referências ao seu universo literário como terror lovecraftiano.

“A mais antiga e forte emoção da humanidade é o medo, e a mais velha e forte emoção do medo é o medo do desconhecido” (LOVECRAFT, tradução nossa, p. 3).

A escolha ótica metodológica para desenvolvimento da crítica aqui presente não discorre sobre todas as possíveis metáforas, analogias e paralelos com as teorias da psicologia ou sociologia. Olhando por uma ótica formal-conteudista – tocando os tópicos de narrativa, estética e temática – o desconhecido é um objeto temático que rodeia toda a aura de ambientação de Possessão.

As personagens agem de forma estranha a nós, seres humanos que se comportam distantemente do nosso referencial de normalidade. A realidade exposta pela narrativa, o mundo ficcional estabelecido por Possessão está longe do nosso imaginário (apesar dos receios e histerias fazerem paralelos com todos os receios que vivemos ou viveremos na contemporaneidade desse texto), pois é uma realidade ficcional distante dos nossos referenciais de convivência – enquanto brasileiro, nativo do interior do estado de São Paulo que tem acesso somente ás realidades imagéticas da Europa Oriental através de conteúdos midiáticos – e a própria distância histórica de uma Alemanha ocupada e palco central simbólico da divisão polarizada da Guerra Fria. O medo paranoico do temor nuclear talvez seja o mais próximo referencial de nós (afinal, a Guerra da Ucrânia e as declarações constantes dos líderes envolvidos fazem esse medo se tornar cada vez mais inevitável), porém é uma aura cósmica. O futuro é desconhecido, com tons cada vez mais apocalípticos, assim, Possessão também desenha uma sensação de que muitos elementos são familiares – seres humanos em crises identitárias envolvendo seus anseios, necessidades e desejos -, porém, simultaneamente estabelece comportamentos e ambientes que tangenciam por completo nosso referencial pessoal de familiaridade.

Seu terror, então, longe de recursos clichês – sustos e cacofonias sonoras – é transportado pelas atuações, pela opressão de seus cenários (muitas vezes claustrofóbicos), pela falta de informações concretas (o que nos distancia e ao mesmo tempo aproxima por visar entender e promovendo total falta de compreensão) e de uma realidade apoteótica que a tragédia é cada vez mais eminente. O próprio filme não está sendo franco com seu público, estabelecendo segredos e camadas de subtextos que criam dificuldades e absurdismos visuais que espantam, geram ansiedade e desconfortos internos extremamente íntimos em quem esteja suscetível à sua imersão narrativa.

Existem três eixos centrais que incorporam esse ideal histérico das ferramentas que manifestam o terror em Possessão.

  1. Em primeiro lugar é a utilização de símbolos religiosos familiares, principalmente de cruzes (que remetem ao imaginário mitológico cristão) que se somam aos debates sobre a crença e possível presença de Deus. Quem acredita em Deus nessa realidade? A figura de Heinrich (amante de Anna) e sua respectiva mãe parecem crentes no Deus cristão, porém, Heinrich incorpora comportamentos completamente contraditórios a norma doutrinária cristã (baseando-se nos comportamentos morais e éticos disciplinares repassados pelos ensinamentos bíblicos). O mesmo quando confrontado com essa contradição por Mark diz ter desenvolvido seu próprio código ético. Há um sinal claro de que as personagens principais abandonaram um eixo crente, ou melhor falando, subverteram suas relações com Deus – talvez sendo aquela própria realidade seu inferno, seu limbo, seu local de punição pela eternidade. Um dos momentos icônicos dessa relação problemática é quando Anna está na igreja em frente a imagem de cristo crucificado. Não existe uma fala sequer da personagem a não ser seus gemidos de sofrimento e seu olhar implorando por uma manifestação miraculosa que a liberte de todos os problemas e pesos que a narrativa expôs até o momento narrativo. Não é vista uma resposta. O silêncio é entregue. A personagem implora com o olhar pela redenção, pelo perdão, pelo abraço confortável daquilo que acabaria com suas ansiedades aprisionantes. Somente silêncio. Nada mais.
  2. Em segundo lugar é a presença da criatura cósmica tetricamente horrorosa possuidora de tentáculos que possui Anna (seu verdadeiro amante). É dotada de todos os elementos desconhecidos clássicos do terror cósmico, onde não existem referências humanas para palpabilizar com palavras o que ela é. Seu visual nos aterroriza e consome por completo a sanidade daqueles que a testemunham, horrorizando ou seduzindo pela loucura aqueles que a veem (Anna é o exemplo claro do segundo fenômeno e, consequentemente Mark ao final da narrativa). O que ela é? Uma figura alienígena que se alimenta de seres humanos e conforme esse ciclo acontece sua forma vai se adaptando, tomando uma figura cada vez mais próxima de um ser humano? Esse ponto abre interpretações, aliás, para uma possível via de interpretação de que o filme se trata sobre uma invasão alienígena. O que é bem plausível, mas nada exclui a possibilidade de uma experiência científica, ou de um enviado por Deus – interpretação que é usada como argumento até mesmo por Anna, que o vê como um presente enviado por essa entidade superior. A criatura que possui a mente de ambos – Mark e Anna – é horrenda em sua forma física e comportamento, protagonizando uma das cenas mais bizarras e grotescas do cinema – em que testemunhamos sem quase nenhuma censura pelos olhos de Mark, a personagem de Anna consumando uma relação sexual com a criatura disforme.
  3. Em terceiro lugar é relacionado ao próprio título que é dado ao filme. Possessão. As personagens estão sendo possuídas, perdendo o controle de suas personalidades. Seja pelas suas vontades internas conflituando com as regras éticas e normalizadoras da sociedade, seja pela presença dessa criatura horrenda mencionada acima. O terror é fulminante e perturbador em uma das cenas mais absurdas e bem executadas do filme, onde a personagem Anna solitária em um corredor silencioso do Metro entra em surto, manifestando esse conflito de personalidades, esse conflito de uma realidade ficcional em que o sobrenatural e a realidade se mesclaram. Como manter a mentalidade sã em um mundo que está surtando e se fragmentando por inteiro? Afinal, sua realidade pessoal e a realidade social estão quebradas pelos diferentes medos e perigos que se manifestam ao longo da narrativa (internos ou externos). Ressalto elogios à atuação da atriz nessa cena em questão, que contém quase nenhum corte e brilha na demonstração de alguém histérico, paranoico e possuído por esses diferentes espectros do medo. Caso esteja curioso, basta clicar aqui e ver o exemplo por si próprio . Mark é outro possuído. Tal qual Anna, é tomado pela possessão de seus desejos e anseios internos, completamente fanático pela esposa, destruído pelas paranoias pessoais – sua obsessão de controle da figura feminina, sua projeção de relação ideal e provável destruição interna pelos segredos testemunhados em sua profissão. Seu fanatismo promove diversas cenas da quebra completa de sua psiquê. Mark ao final também se entrega a loucura completa, abraçando toda violência promovida já pela esposa, auxiliando-a em esconder e proteger a criatura cósmica na qual ela tem relações sexuais.

O que conecta todos esses pontos e contempla o máximo impacto estratégico do filme em transmitir esse terror é representado pela personagem do filho de Anna e Mark. Bob (Michael Hogben) desde o início tem comportamentos esquisitos – e o tempo inteiro a criança é palco da destruição completa de sua inocência, recorrendo a todos os recursos para ignorar essa realidade disforme, corrupta, nojenta, assustadora.  A criança está no meio de todos esses conflitos de interesse do casal, abandonada em diversos momentos e testemunhando vários momentos de crise entre os pais que discutem nenhum um pouco de maneira a esconder as situações do filho. Qual seu recurso de fuga? Bob ama brincar de ver quanto tempo consegue ficar sem respirar em baixo d’água na banheira. É sua maneira de visar silêncio, de visar calmaria, de escapar da opressão constante do mundo. Ela não está segura – o filme deixa isso bem claro – das malignidades e insanidades que rodeiam seu ambiente – e é em sua figura que o impacto em que o público mais sente – afinal, incorpora todas os símbolos de inocência e ingenuidade. Qual é sua infância? Em que mundo vive? Não há direito de escapatória e não existe respingo de alívio. E a criança é a única que parece ter consciência da existência e da fase final de transformação da criatura cósmica que possui a mente de seus pais. A criatura pode ser denominada como um doppelgänger.

A palavra e a criatura são famosas e está inserida em diversas mitologias e manifestações artísticas – independe do tipo midiático. A famosa figura do duplo, da réplica, daquele capacitado a copiar perfeitamente a identidade de um indivíduo ou sujeito.

Há vários momentos em que essa figura do duplo é mencionada, seja através de diálogos, seja através da exposição de sujeitos visuais. Anna possui uma personagem idêntica a mesma, porém, nomeada como Helen (que trabalha como professora/cuidadora na escola em que estuda Bob). E sua identidade visual apesar de quase idêntica, tem características completamente divergentes de Anna – Helen é pacífica, responde as necessidades de Mark e até mesmo limpa o apartamento – cena em que Mark fica em total estado de prazer por visualizar uma parceira ideal. A forma final da criatura que se relaciona com Anna é a manifestação do duplo do próprio Mark, apesar de sua cópia ter uma atuação quase fanática no olhar, uma sensação de loucura, uma sensação alienígena tomada por instintos violentos e manipuladores.

Então, qual personagem é verdadeiramente si mesmo durante o longa-metragem? Cria-se uma suspeita clara no que confiar ao longo da narrativa. Subverte-se as expectativas, realçando a clara característica do filme: não confie no que está literalmente na tela. É um desafio final, uma charada conclusiva que nos abastece com mais confusão. É uma confusão prazerosa, que imediatamente gera o resultado de querer reassistir o filme para tentar conectar os pontos havendo uma noção do contexto todo. Seu take final com o sorriso de Helen para a câmera enquanto o duplo de Mark se movimenta como sombra na penumbra da porta manifesta essa questão e, como consequência emoção. É aterrorizador a sensação da tamanha falta de controle do espectador sobre o que entender, o que capturar da narrativa, foge de nossas mãos, jogando-nos em um vazio sem esperança. Pois, Bob, na cena final, estava sendo cuidado por Helen. Quando a campainha toca e reconhecemos o duplo de Mark pela sua forma sombria atrás da porta, Bob imediatamente começa a verbalizar: não abra, não abra, não abra. A criança sai correndo em desespero, visando escapar da desgraça, jogando-se na banheira – mesmo gesto que repetiu ao longo de toda narrativa, segurando a respiração. Mas, dessa vez não há esperança. Não tem ninguém contando os segundos que ele conseguiu. É traumático testemunhar uma cena de possível suicídio infantil. Ninguém está seguro. A realidade se quebra de vez nessa culminação trágica desgraçadamente desgraçada. Sinos de alerta tocam. Luzes tomam o corredor em que Helen foi recepcionar o visitante. Gritos de seres humanos lá fora. Cacofonia apocalíptica. O mundo está acabando. Bombas foram lançadas. Seria a guerra nuclear ou uma invasão alienígena dessa espécie que copia os seres humanos?

Resta o olhar e o sorriso de Helen para nós. Para o público. O olhar que conta as maiores verdades. No fim. Justo no fim. Não há esperança. Para eles – as personagens daquela realidade ficcional – e para o próprio público, que da mesma forma foi jogada no meio de eventos que já se discorriam antes do início narrativo, é empurrada para o final de uma história em que visualizamos somente o início da tragédia apoteótica final. Existem luzes no fim do túnel. Mas não são luzes de alegria ou felicidade. São luzes imersas nas sombras. Luzes que anunciam o fim dos fins. Talvez… Somente talvez. Deus não exista naquele mundo. Se existe, não é o Deus benigno que estamos tão acostumados a ouvir falar…

Como observação final, espero ter conseguido pelo menos tocar aos diferentes temas e reflexões que visualizei ao reassistir esse filme. Como podem ver, é uma crítica maior do que o normal – e olha que já escrevo críticas consideravelmente extensas. É um filme complexo, cheio de nuances e meandros que podem se tornar abismos quando explorados. Tentei ao máximo apresentar e refletir sobre os mais diferentes tópicos e sei da possibilidade – que aconteceu com total certeza – de mais ter gerado confusão do que auxiliado.  Mas, se enquanto resultado, gerei ao menos curiosidade por assistirem o filme, considero meu papel enquanto crítico completo. Possessão é daquelas obras desafiadoras que devem ser revisitadas de tempos em tempos – e com o psicológico preparado – para novos detalhes se manifestarem. É isso. Recado dado. Obrigado pela leitura e bons filmes rapaziada! – Prometo que a maratona de filmes do David Lynch irá continuar!


FilmePossession
Elenco Isabelle Adjani, Sam Neill, Michael Hogben, Johanna Hofer, Heinz Bennent, Margit Carstensen, Carl Duering.
Direção: Andrzej Żuławski
Roteiro: Frederic Tuten, Andrzej Żuławski
ProduçãoFrança, Alemanha Oriental.
Ano1981
GêneroTerror, Fantasia, Drama.
Sinopse: Após retornar de uma longa viagem, tudo que Mark quer é encontrar sua esposa Anna e seu filho novamente. No entanto, assim que chega a Berlim, Mark percebe que Anna mudou radicalmente de comportamento e, assim que pode, ela pede o divórcio.
Classificação18 anos
Distribuidor: Gaumont
Streaming: YouTube.
Nota9,5

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