CRÍTICA – MIRACLE MILE

CRÍTICA – MIRACLE MILE

Nada mais prazeroso do que comentar sobre um possível cataclismo nuclear ficcional, em uma época tão próxima do apocalipse climático e o total colapso da sociedade capitalista contemporânea. Para dar aquele abraço gostoso no coração, inflando-o com ansiedade, pessimismo e quem sabe uma gotícula sóbria de criticidade. Miracle Mile.

Vale ressaltar que como foi dito já na crítica de Old Boy, este é um filme que vale a experiência pura antes de me acompanhar na viagem por essas várias palavras. Talvez os SPOILERS venham a retirar todo o encantamento que existe nessa obra genial escondida pelo tempo e absorvida pela indústria cultural, sendo uma joia do tempo passado que clama por ser redescoberta!

Já foi comentado, aqui nessas mesmas páginas, sobre outro Catástrofe Nuclear (1984). Miracle Mile trata do mesmo eixo temático, porém não segue pelos caminhos performáticos do realismo, de uma conscientização pelo impacto do público, mostrando o passo a passo as consequências de uma guerra com uso de armas de destruição massa. Aqui é a iminência, a possibilidade, o respingo do último momento da humanidade diante do fim, da última trombeta, do ressoar da badalada do sino final, do fechar das cortinas da trajetória história da humanidade.

O interessante é já o contraste com a abertura do filme e o estabelecimento textual aqui feito sobre o que seu eixo narrativo-temático. Estamos em um museu arqueológico, mostrando as diferentes etapas históricas das diversas espécies que habitaram e habitam o planeta Terra, já nos expondo os protagonistas da história: Harry Washello (Anthony Edwards) e Julie Peters (Mare Winningham) e sua dinâmica de flerte indireta conforme as transições de ambientes. O dia-a-dia mais comum que poderia se deparar, um possível futuro casal se conhecendo pela coincidência de estarem no mesmo lugar, na mesma exata hora. Não há nada de espalhafatoso, havendo aquela sensualidade única estética dos filmes da década de 80, com a primorosa e excelente trilha sonora feita pelo grupo Tangerine Dream, que não irá sair de sua cabeça e que ao longo do longa-metragem só cresce e ganha mais destaque por se unir perfeitamente conforme o ritmo da narrativa. O casal se encontra, se apaixona, mas Harry tem pouco tempo para afirmar aquele amor à primeira vista, combinando com Julie um encontro ao mais tardar da noite, pois no próximo dia não estará mais na cidade. Harry coloca seu despertador eletrônico para acordá-lo antes do horário estabelecido do encontro depois do horário de trabalho de Julie na lanchonete, um descanso não mataria ninguém. Por uma piada cósmica, pela obra do fatalista destino, fuma um cigarro antes de adormecer e o descarta ainda aceso. Uma pomba pega o cigarro, leva até seu ninho que está bem em cima da fiação elétrica do hotel, queimando seu ninho e por consequência a fiação, provocando um curto circuito em toda a rede elétrica do edifício. A energia cai e, por consequência, o despertador não toca e assim Harry dorme muito mais do que deveria, perdendo por completo o horário, enquanto vemos Julie o aguardando na porta da lanchonete onde trabalha. Um desencontro causado pelo acaso universal.

E, desencantado por Julie não atender suas ligações, na área externa da lanchonete, fumando um cigarro para aliviar a tensão e ansiedade, Harry percebe que alguém liga de volta para o telefone público. E a virada de chave, o momento que o filme vira de ponta cabeça é estabelecido.

“Está acontecendo. Eu não posso acreditar, cinquenta minutos contando, Jesus. Esse é o grande momento, isso é real pai, não é mentira”.

“Sobre o que exatamente você está falando?”

“Estou falando sobre a porra da guerra nuclear!”

O homem que havia ligado do outro lado do telefone é interrompido pelo sons de tiros e a ligação é cortada depois de alguém responder Harry para esquecer tudo o que ele ouviu.

Seria um trote? Não, não é possível, foi real demais para que fosse só uma pegadinha. Um erro de informação? Harry perpassa pelas diversas possibilidades, atordoado pelo que ouviu. Tenta em meio aos transeuntes estranhos e únicos da madrugada naquela lanchonete confirmar a informação que recebeu. É chamado de louco, insano, mas pela tamanha convicção que demonstra, todos, menos um, acabam acreditando de que a guerra nuclear irá ocorrer em aproximadamente uma hora. Daqui adiante várias situações absurdas discorrem com a narrativa – e eis aqui a genialidade do roteiro – sem nunca verdadeiramente afirmar o que acontecerá ao término da narrativa. Afinal, é real ou não a informação que foi repassada para Harry? Caso não, toda a insanidade que ele vem a causar no ambiente não passaria de um crime absurdo, pelo menos o mundo não vai acabar sendo atomizado, mas, caso seja verdade… Chegou o dia final e as cortinas irão se fechar para a humanidade.

O mérito maior, do ponto em diante após a ligação, é o extremo respeito pelo tempo narrativo se sincronizar com o tempo de duração do longa-metragem. A partir daquele ponto, nos resta uma hora de duração aproximadamente e, para as próprias personagens resta uma hora para quem sabe, encontrar um meio de sobrevivência com o iminente cataclismo nuclear. A transmissão da ansiedade é transportada para o público e, quando se pensa no contexto em que é lançado, onde o temor nuclear era tão vívido pelo contexto histórico – hoje em dia sendo muito mais disfarçado – deixa tudo mais verossimilhante com o mundo empírico daquele que testemunha a história sentado na sala de cinema ou no prazer confortável de sua própria residência. Surge, sempre em algum momento, durante a narrativa, na mente dos interlocutores que a presenciam, a questão: “o que faríamos se estivéssemos na mesma situação?”.

Não há resposta exata, não há precisão, é difícil até mesmo de contemplar a sensação do fim iminente – não que se esteja longe disso nos dias atuais, com as Mudanças Climáticas sendo tão presentes na atualidade – e, simplesmente ocorrendo por decisão de alguns poucos senhores sentados em suas cadeiras tomando decisões políticas que geram consequências para a humanidade como um todo. A sensação de pequenez, de insignificância não pode ser afastada, somos insetos prestes a serem exterminados pelos mesmos exatos insetos. Na verdade, não, longe disso, aproveito de uma fala do próprio Harry: desta vez é a Era da Baratas, afinal os insetos sobreviverão, já a humanidade… É outra história.

Nesse clima de extermínio, com a narrativa construindo uma apoteótica conclusão, outra vez o roteiro surpreende. O interlocutor se afeiçoa por Harry e Julie, após Harry ir encontra-la em seu apartamento dopada de remédios pela decepção por conta do atraso dele. A resgata sem contar o motivo de seu aparecimento e, sem justificar a adrenalina e loucura que percorrem em seu rosto, mentindo de que a levaria para um passeio de balão. Não leva muito tempo para Julie perceber o que realmente estava acontecendo ou deveria. O filme não entrega respostas enquanto acompanhamos através das duas protagonistas os sentimentos e anseios que permeiam, reagem junto dos mesmos quando outra personagem colapsa psicologicamente ou quando a sociedade como um todo cede a loucura minutos antes da queda dos mísseis nucleares. Então, beirando os minutos finais, a narrativa recorta para Harry e Julie, que no último segundo de esperança de fugir no helicóptero que aguardaram durante todo o longa é afetado pela onda explosiva, caindo no fundo do poço de piche do museu arqueológico na qual o filme se deu início. Não há uma mega explosão, não há gritos, cadáveres, crianças carbonizadas, animais desintegrados. Há o silêncio, o escuro, a tensão das batidas finais da trilha sonora… Naquele mesmo museu que retratava todos os outros extermínios em massa que o planeta terra presenciou, as duas personagens se veem na escuridão, uma com a outra, sem escapatória, sem esperança, sem respostas de que do outro lado ainda há uma solução. Não. Acabou. A humanidade se arrastou para o fundo do poço, retornando ao pó, retornando a sua não existência, para um futuro onde não exista humanidade, onde existam resquícios do que um dia já fora a sociedade do Séc. XX. Tal qual as múmias encontradas em Pompeia, restou o espaço de um museu nos ethos cósmicos do infinito.

É interessante notar que um filme norte-americano não venha com uma mensagem esperançosa em sua conclusão, mantendo os pés no chão e evitando uma chuva de efeitos especiais impactantes e viscerais. Opta pela simplicidade e, surpreende por essa simplicidade de impactar tão forte aquele que estiver imerso em sua narrativa. Miracle Mile, dentro da rotina mais previsível, caminha pela enganação e dúvida, para a completa certeza final de que a Guerra Nuclear é iminente e, nós, formigas no sistema, acompanharemos o mesmo final terrível que a elite burguesa detentora das ferramentas políticas. Há um charme aterrorizante e, além de todas essas menções e reflexões, é sempre bom ver um ótimo filme de ficção científica, gênero que nunca deixa de surpreender.


FilmeMiracle Mile
Elenco Anthony Edwards, Mary Winningham, John Agar, Denise Crosby
DireçãoSteve De Jarnatt
RoteiroSteve de Jarnatt
Produção: Estados Unidos
Ano1988
GêneroDrama, Sci-fi, Thriller
Sinopse: Miracle Mile é um filme de drama e suspense apocalíptico americano de 1988 escrito e dirigido por Steve De Jarnatt e estrelado por Anthony Edwards e Mare Winningham. O filme retrata o pânico em torno de um suposto dia do juízo final provocado por uma súbita eclosão de guerra e seu holocausto nuclear que se aproxima.
Classificação14 anos
DistribuidorVersátil
Streaming: Indisponível
Nota9,5

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