Obra extremamente controversa, não por conta de seu conteúdo, mas por sua recepção ao público em geral. Muitas vezes colocado em um pedestal e outras muitas vezes cancelado. Pelas palavras do próprio Wagner Moura, o filme mais difícil de defender em toda sua carreira. E aqui, faço das suas palavras as minhas, alterando somente a dificuldade. Não. Não é um filme difícil de defender e, é uma porta de abertura incrível para o que o cinema nacional tem de oferecer ao momento em que se aprofunda nas extensas produções que existem. Tropa de Elite
Pelo ponto de vista técnico, não existem elogios suficientes para sua escolha fotográfica, montagem de cenário e ambientação. O filme exala uma realidade bruta, violenta e misteriosa. Exalta as vielas, becos e minúsculos corredores. Todo o ambiente parece claustrofóbico, exibindo um Rio de Janeiro sem uma aproximação do seu glamour, da sua beleza, sem praias, optando em promover as sombras, aquilo que se esconde nos cantos. Quase parece uma cortina, que quando atravessamos o palco e direcionamos o olhar para o que há atrás, ficamos estarrecidos de pavor, curiosidade e anseio. As luzes se apagaram, a noite glorificou e a lua refletiu o sangue que escorre pelas ruas e favelas da cidade maravilhosa. A trilha sonora de Pedro Bromfman é de papel importantíssimo aqui, construindo tensões maravilhosas de roer os ossos e sabendo se esconder em silêncios contínuos com poucos toques de instrumentos com cordas que aliviam ao mesmo tempo em que insinuam toda a corrupção vil que permeia a narrativa inteira do longa. Somadas as sombras que somente nessa experiência de revisitação percebi o quanto as sombras dos cenários compõem meu imaginário criativo. A estética de Tropa de Elite deve e merece ser exaltada. Ônibus 174 já possui os ares que iriam culminar na montagem do longa de Padilha, construindo um thriller policial incomparável e único, que possuía adversários de alto escalão no nosso cinema: Cidade de Deus, Carandiru, Lúcio Flávio: passageiro da agonia e etc.
O trabalho com o elenco toma outra escala: não há personagens aqui que não tenham entrado no panteão de memórias coletivas do brasileiro em torno do filme. Todos sem exceção estão extremamente bem encaixados em seus papéis e suas participações parecem possuir um cálculo planejado em suas aparições. O afeto é construído, mesmo em toda brutalidade exalada, de uma maneira que a realidade deles se transporta para nossa realidade – afinal, até onde a realidade retratada pelo filme se distância da real violência sistêmica vivida pelos cariocas? – engajando a cada novo momento narrativo que a história proporciona. As malícias e inocências visíveis nas ações de cada personagem, o encadeamento de eventos, as interações pontuais fazem da construção de mundo em Tropa de Elite quase uma magia de tão fluída que é. Equivalente ao receio de adentrar em uma corredeira, com o medo do afogamento, quando menos se espera o corpo gerou movimentos que nos jogou com tudo naquela realidade e, desaviados, fomos tomados por completo, da cabeça aos pés, acompanhando a trajetória trágica e aterrorizante dos envolvidos – dos milhares desde o início da história do Rio de Janeiro – na realidade do crime. É quase anárquica a sensação transmitida por esse mundo meta-ficcional, onde a ordem depende de quem tem mais, de quem ganha mais, da onde sai o maior “arrego” do bicho, de quem é capacitado e possui os recursos políticos para influenciar do jeito que quiser da maneira que bem pensar.
Por mais nomes que citemos do excelente elenco escolhido, o papel de destaque (e talvez uma das suas, se não a melhor atuação de sua carreira) vai para Wagner Moura e sua personagem icônica e polêmica Capitão Nascimento. Uma figura que sofre dos mesmos males que outra bem famosa no meio dos quadrinhos – Justiceiro – e, que também teve seu símbolo usurpado por aqueles que não sabem interpretar bem um texto, levados ao amor intrínseco pelo fascismo e adeptos das atrocidades cometidas em nome da “família” ao redor do mundo inteiro. Existem paralelos entre o comportamento e a maneira de enxergar as “resoluções” em relação aos problemas em torno da segurança pública e criminal, porém, com suas diferenças. Capitão Nascimento é uma personagem traumática, de experiência insalubre e trágica por inteiro, equivalente aos heróis gregos, fadada ao destino cruel e inexorável. Sugada e possuída pelo meio em que trabalha, Nascimento é recheado de crises de ansiedade, paranoia e pânico, recusando-se a enxergar o quanto aquela vida o afasta da sua família, perdendo todos os processos da gravidez de sua esposa, em nome do que? “Da segurança do Rio de Janeiro”. Dá para perceber – e depois essa resposta é concretizada em Tropa de Elite 2 – que não é uma solução, é sistêmico, mudam-se o nome dos agentes e oficiais, porém, no fim, as sombras perduram, a desigualdade aumenta e o sangue continua escorrendo. Tal qual o Justiceiro, é um espelho de reflexão que abre para o debate levantado por tantos poucos que é como essa realidade de combate ao crime brutal destrói completamente a psique dos agentes de segurança pública, que se tornam aquilo que eles enfrentam, usando das mesmas táticas e estratégias, dosando com poucas pílulas uma doença que nunca acabará, um ciclo vicioso e violento onde o sangue dos mais pobres – tanto de quem mora na favela tanto daquele que sobe em uma operação para “proteger” a sociedade saem perdendo, enquanto os reais criminosos e corruptos comem camarão no Copacabana Palace. As sombras visíveis predominantemente em todas as cenas, também são possíveis de captar nos olhos de Nascimento, nos seus olhares que ditam o ritmo narrativo, daquele que tem noção do todo, moldando o ritmo das cenas e suas reações / interpretações, simultaneamente dotada de um tom pessimista, daquele que não vê esperança no final, diferenciando-se do herói grego que não sabe ao que está fadado, Nascimento sabe de sua natureza inevitável e, resta para ele o desencargo de relatar, para quem sabe limpar seu coração de todo bloqueio emocional, visando frieza e atingindo a total indiferença com a violência testemunhada e promovida.
As personagens André Mathias (André Ramiro) e Neto Gouveia (Caio Junqueira) representam a completa e total ingenuidade em relação ao sistema de segurança pública, almejando fazer a diferença e combater o “mal”, sabe-se lá qual seja esse lado moral e quem é o “vilão” ou “vilões”. Neto é fruto do imaginário romântico em torno da violência, havendo um potencial para se transfigurar no novo Nascimento, adepto da mentalidade fascista, segurando-se no bastião do “incorruptível” e se defrontando com a completa decadência dentro dos batalhões das policias militares do Rio de Janeiro. André é dividido entre a vida de advocacia e da segurança pública, sonhando com ambas as faces do mundo, havendo ali um idealizador, alguém que pensa para além das fronteiras da materialidade e, no entanto, muito mais malicioso em relação aos problemas. Neto é o braço e André é a cabeça nessa amizade que busca lutar para ocupar seu espaço na sociedade carioca.
O conflito principal de André, vivendo a realidade de ser membro da Polícia Militar e ao mesmo tempo buscando seguir uma vida de estudos acadêmicos na universidade, é outra faceta interessante e, talvez a pitada de sarcasmo, ironia e cinismo de José Padilha, ousando cutucar os “intelectuais” que tanto enchem a boca para debater sobre os problemas de segurança sem contemplar a real materialidade. Existem tantas faces e camadas na relação estabelecida entre André e o elenco universitário: Maria (Fernanda Machado), Edu (Paulo Vilela) e Roberta (Fernanda de Freitas) que trabalham diretamente em uma ONG na favela dominada pelo tráfico de drogas representado pelo líder Baiano (Fábio Lago). O filme transmite os diferentes pontos de vista em conflito, com André se abstendo de um posicionamento que é claramente contrário ao comportamento do núcleo universitário, porém, esse embate indireto gera desconforto, por notar os contrastes de mundo. Por mais que se tenha a sensação de que o filme enfoca em uma “defesa” do pensamento conservador, talvez essa intenção seja proposital – graças as respostas que vem junto de Tropa de Elite 2 – que é através da ótica de alguém dentro da segurança pública. É exaltar a hipocrisia da elite, as mazelas da intelectualidade que por tanto tempo ignorou a importância do debate da Segurança Pública e, simultaneamente, também demonstrar os olhos fechados daqueles dentro do sistema. Os desfechos desse arco todo de personagens culmina no ápice da tragédia: execuções brutais – que não deixam de ter sua sensualidade cinematográfica – sem alívio ou desvios de foco. Tudo é mostrado, no fim, o vilão é estabelecido sem sua piedade e sem ser romantizado, gerando o sentimento de que todos no fim são vítimas, algumas ingênuas outras na malícia e por último na intenção declarada. É o ciclo vicioso da violência, que atinge seu apogeu com a morte de Neto e a jornada da vingança empreitada por André e Capitão Nascimento, entregue completo a fúria. Haviam esperanças para Nascimento, o caso do fogueteiro, a humanidade bateu em sua porta diante daquela mãe que só desejava o corpo do filho para o velório. Sente na pele daquele que também anseia a paternidade, passando pelo processo de enxergar no outro que antes não possui uma face. Esse respingo de luz é apagado por completo no final. Não. Não resta nada além da brutalidade, miséria, ansiedade, paranoia, pânico e claro… Violência.
E, por fim, o núcleo do policial Fábio (Milhem Cortaz) que expõe toda sujeira da Policia Militar é a pitada que dará aberturas para a continuação do longa. Milhem incorpora com todo seu espírito uma malícia, um trejeito, uma sensualidade e ao mesmo tempo caretice carioca, que não há como não se simpatizar pela sua presença. André e Neto, sabendo de todos os meandros que Fábio está envolvido, geram afeto e criam uma amizade com o policial veterano. É o núcleo que concentra toda a parte de alívio cômico – “tem carburador ou não tem?”, “Para fazer rir tem que fazer rir” e etc, com o ar mais descontraído e frases que adentraram no meio popular brasileiro, porém nunca deixando de lado as tão e frequentemente citadas sombras do filme. Elas surgem aqui pelas paredes, pela velhice e decadência da própria infraestrutura física do batalhão, sempre com um ar de objetos amarrotados e poeira, carros velhos e abandonados, havendo glória em pouquíssimos momentos que aparecem as salas dos altos oficiais que, ironicamente em sua limpeza e realeza, são os mais sujos e corruptos dali, os “cabeças” do sistema entre o interesse político e a manutenção do poder nas ruas.
Tropa de Elite atinge todo o renome e reconhecimento por conta dessas questões problemáticas, exaltando uma agência de segurança pública que é sensualizada e romantizada ao último segundo. Tal qual os filmes norte-americanos e seus variados tipos de agentes e heróis, é uma nuance que estica uma corda que quase arrebenta para consagrar Nascimento enquanto símbolo nacional. Quase tudo do que é comunicado ao mundo através de sua ótica é perdido, exaltando aquele que é extremamente problemático. Talvez esse seja o reflexo da própria sociedade brasileira, que nesses anos recentes abraçou por completo a pura decadência ideológica, incapaz de concretizar golpes de estado e imputando suas esperanças em um verdadeiro miliciano carioca, quase fazendo paralelos com o discurso tão presente na continuação do longa. Daí advém esse quadro tão complexo e diluído desse filme, que atinge os patamares internacionais. Existem aqueles que se entristecem com essa exposição, argumentando que o filme exalta uma imagem problemática do Brasil, porém, junto de todos os outros filmes que retratam a criminalidade presente nas terras tupiniquins, é uma face que reflete fragmentos da realidade social brasileira. Para vencer essa formação de preconceito, talvez precisamos vencer as dificuldades do mundo concreto, para quem sabe, gerar reflexos nos feitos ficcionais das diferentes maneiras de manifestação artística. Tropa de Elite faz parte merecidamente do panteão dos grandes filmes brasileiros, apesar de todas suas polêmicas, mas esse mérito só consolidam a partir da existência de Tropa de Elite 2 que responde todas as polêmicas e interpretações que saem pela culatra ao longo da recepção do primeiro longa.
É meus consagrados e camaradas… O sistema é foda!
Filme: Tropa de Elite Elenco: Wagner Moura, André Ramiro, Caio Junqueira, Milhem Cortaz, Fernanda Machado, Fernanda de Freitas Direção: José Padilha Roteiro: José Padilha, Rodrigo Pimentel, Bráulio Mantovani, John Kaylin Produção: Brasil Ano: 2007 Gênero: Ação, Drama, Suspense Sinopse: Em Tropa de Elite, o dia-a-dia do grupo de policiais e de um capitão do BOPE (Wagner Moura), que quer deixar a corporação e tenta encontrar um substituto para seu posto. Paralelamente dois amigos de infância se tornam policiais e se destacam pela honestidade e honra ao realizar suas funções, se indignando com a corrupção existente no batalhão em que atuam. Classificação: 16 anos Distribuidor: Universal Pictures do Brasil Streaming: Netflix, GloboPlay, Prime Video, Telecine Nota: 9,5 |
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