CRÍTICA – ÔNIBUS 174

CRÍTICA – ÔNIBUS 174

Documentários são desafiadores pela sua natureza realista. É difícil intercambiar entre a perspectiva social do que é apresentado e a estética da produção. Em qual quadro encaixar? Qual rumo tomar? É uma manifestação do fazer visual complexa como qualquer outra, mas sua pitada de expor condições sócio-culturais da realidade empírica através da captura de imagens agrega um valor complicado. A mescla entre as possíveis narrativas, a percepção dos sujeitos para aquilo que estão comunicando, a percepção dos receptores que interpretam de mil e uma maneiras e as decisões da direção para elaboração da exposição da ideia que será documentada. Ônibus 174

Ônibus 174 é daqueles documentários que retorcem o espírito e a alma social daquele que testemunha a exposição nua e crua desse sequestro que denunciou tantos problemas infraestruturais da segurança pública, das percepções retorcidas de justiça da sociedade, da invisibilidade de determinados grupos sociais brasileiros e da desigualdade visível e estrutural que permeia pelas camadas relacionais dos seres humanos que habitam essas terras tupiniquins.

Antes de adentrar aos devaneios vale a exposição sobre o que se trata – dado já aos onze anos passados do caso – para assim entender os diferentes momentos históricos e as consequências dos fenômenos sociais que rodeiam o protagonista do crime e, por fim, as decisões criativas para composição do longa-metragem.

Ônibus 174 se trata de um criminoso – Sandro Barbosa do Nascimento – que sequestra o respectivo ônibus no Rio de Janeiro e faz vários passageiros de reféns durante a tarde até o início da noite, ameaçando retirar suas vidas. Amplamente documentado pela televisão na época, com aquele sensacionalismo midiático já esperado, com registros minuto à minuto do que ocorreu na época. José Padilha – que ficaria famoso posteriormente por Tropa de Elite – toma a direção de não expor narrativas, no máximo orientando o público através de capítulos que vão guiando as perguntas feitas aos entrevistados e testemunhas do caso, deixando-as falar livremente sem impor uma voz narrativa que condicione opiniões. Deixa a cargo do público entender, compreender e interpretar os questionamentos – que irão se manifestar em seus futuros filmes, um abraço para o incrível Tropa de Elite e, quem sabe recebera uma crítica por vir aqui no site – das problemáticas que rodeiam o estado do Rio de Janeiro e as desigualdades presentes no Brasil.

A edição crua, dotada de poucas cores e com uma trilha sonora ambiente de poucos sons e ruídos baixos exalta o horror de uma realidade que parece distante e próxima simultaneamente. A jornada é pesada, feita para exalar o cheiro da podridão que coexiste por baixo desse episódio específico. Não é daquelas obras que, após assistir, dá para simplesmente sair, comer algo legal e deixar apaziguar. O sentimento perdura, acompanha, reside no coração, gerando revolta, melancolia e depressão. Tão denso quanto a realidade denunciada por Pixote (1980), de Héctor Babenco (crítica escrita pelo autor aqui para o Club na época que os textos eram no instagram) que amargura o brilho da vida. Não é de todo inesperado que muitos saiam pessimistas após essas experiências, sem enxergar a luz no fim do túnel, mas talvez adentrar no subsolo juntos dos vermes. Sandro é mais um invisível dentre tantos no Brasil, que ganhou notoriedade pelo seu desespero – já aproveito para aqueles que venham dizer que estou defendendo bandido, que a realidade necessita de compreensão para entender as manifestações desses episódios, não é isolado e não foi o último episódio – que sofreu com as mazelas da pobreza, da desigualdade e da truculência do sistema carcerário brasileiro.

Sandro Barbosa do Nascimento com menos de dez anos presenciou a mãe ser degolada em sua frente, fugindo de casa pouco após o episódio indo residir na rua, sobrevivendo dos furtos, apaziguando com as amizades de outros na mesma condição e escapando através do consumo e, consequente vício em substâncias ilegais. É tão distante, que resta ao imaginário impor, sem nem mesmo atingir com êxito, experimentar pela ficção do consciente/inconsciente vivenciar uma vida tal qual a de Sandro e dos outros garotos/garotas que aparecem durante o documentário. As ruas não perdoam, a indiferença da selva de concreto, a violência que estão impostos todos os dias matam e ceifam vidas diariamente. Poucos são aqueles que estendem as mãos para doar migalhas aos necessitados que não possuem voz alguma perante a sociedade, vivendo as margens das costumeiras tradições sociais que permeiam aqueles que possuem um teto, uma família e a segurança alimentar diária. É amplamente estudado e denunciado todos os anos por diferentes e diversos estudos os danos psíquicos e físicos daqueles que vivem em situação de rua, que possuem uma baixa expectativa de vida e uma alta chance da dependência química. Em um mundo da invisibilidade, como não ver soluções através das associações ao tráfico? Na iniciação no crime organizado? Em furtar daqueles que possuem o mínimo e ao máximo? Como não criar um ódio pela sociedade de classes que ignora por completo tais problemáticas, preocupadas somente em suas compras no final de ano e qual será o novo resultado da partida do seu time de futebol do coração?

É uma lição que cabe ao próprio autor dessa crítica e a todos que ali leem, que nos distanciamos em nossa zona de conforto para ali, proteger-nos do desconforto de ver outros seres humanos em condições miseráveis, inseguros do possível assalto, do possível contato, da possível quebra da barreira que nos faz ver no próprio espelho a decadência da sociedade em que vivemos e a falência completa vigente do Capitalismo. É mais desumano, quando se parte para a visão daqueles que nem mesmo buscam simpatizar, desenvolver uma empatia por tais figuras, criando uma redoma de justificativas que abandona por completo os miseráveis. É vagabundo. Não se esforçou o suficiente. Se quisesse teria tido outra vida. Não fez por merecer. Bandido bom é bandido morto.

Nesse escudo erguido da defesa, consegue-se imbuir todos os outros valores que o “brasileiro de bem” enche a boca para proteger, fazendo de pouco caso para as reais problemáticas. Não se vê como parte daquele coletivo, não se vê como grupo, enxergando somente o próprio umbigo enquanto grita em prol daqueles que acumulam mais e mais. Sandro incomoda nos corações e mentes, como uma das reféns vem a comentar ao longo do documentário sobre sua experiência naquela situação desesperadora, afinal tinham quase a mesma idade, como duas vidas tão alinhadas poderiam ter tido experiências tão distantes uma da outra?

O medo, insanidade, desespero, ansiedade, bravura daquele que sufoca em seus últimos respingos de segurança, gritando que retiraria vidas, hesitando pelo dia inteiro em executar aquilo que tanto prometia desde o momento em que os policiais chegaram ao ônibus. Fica claro que Sandro não estava preparado para aquele momento, escapando-lhe das mãos o controle até mesmo da vida invisível que possuía, ganhando toda a notoriedade da sociedade brasileira. Notoriedade que já conhecia, da indiferença e da subjugação aos interesses de quem detém a riqueza. Mas aqui, adentra a declarada – antes silenciosa, manifestada por palavrões, por mãos que mandam o menino, o adolescente, o adulto se afastar – raiva. O ódio por ele, antes estrutural, agora é aberto. A segurança pública exalta essa ideologia: exterminar o inimigo, eliminar aquele que quebra o status quo, silenciar para de baixo da terra aquele “preto fudido e vagabundo” que ameaça os cidadãos de bem. Há um detalhe, não é um episódio isolado, um surto específico de Sandro, seu ódio por aqueles que deveriam proteger a sociedade não é gratuito e, não somente estrutural. Sandro é sobrevivente do episódio específico do “Massacre da Candelária” (1993) quando dois carros pararam na calada da noite em frente à igreja no Rio de Janeiro que dá nome ao episódio e, de dentro homens atiraram com fuzis nas crianças de rua que ali dormiam. Oito crianças mortas de diferentes idades. Há quem na época aprovou o episódio, como hoje em dia, sabe-se que outros tantos justificariam – limpeza urbana, que acabe com eles, que essas vidas sejam jogadas no escanteio e que o pobre continue silenciado e escravizado as amarras da burguesia. Sandro carregava consigo tantos episódios traumáticos, que é por natureza estranhar, quem em certos momentos da sua breve jornada na invisibilidade da sociedade brasileira, tenha almejado retornar à “normalidade” do cidadão. Preso diversas vezes, foi exposto também a violência carcerária tanto das prisões para jovens quanto naquelas para maiores de idade.

Quando nós é mostrado um dos lugares na qual Sandro ficou preso, um local em uma das prisões no Rio que é apelidado de “Cofre”, o corpo inteiro arrepia, os olhos travam e uma certa tontura atingem. O próprio carcereiro que trabalhava na época ali, comenta sobre, falando que quando era falado ao preso que ele seria levado ao “Cofre”, imploravam pela salvação, para escapar daquela experiência. A energia atroz que emana somente das imagens é arrebatadora. Escuridão, sujeira, obscuridade. Seria embaraçoso rodear de mais adjetivos algo que é quase inexplicável de capturar através de palavras. Um ambiente que suga sua humanidade, digno das mais assustadoras descrições da literatura gótica. Sandro durante o sequestro inteiro, mostra não querer ser preso, não anseia pelo tratamento policial, que caso não ceifasse sua vida, para além dos espancamentos, em sua vida de cárcere, tudo seria relembrado. É uma linha sem retorno, é um caso sem esperança, resta-nos – para aqueles que não conhecem o caso – ver a consolidação da tragédia. Fora do ônibus todos são adversários de Sandro, não há um ali sequer para resguardar e preservar sua entidade física e psíquica. Um animal enjaulado, portando de uma arma, utilizando de outras vidas como escudo para sanar necessidades que nem mesmo ele sabe quais são. As vítimas de seu ato desesperado, condicionadas ao terror, condicionadas ao seu instável temperamento, esperando a salvação e se negando a acreditar na condenação.

Por quê, então, o documentário denuncia os problemas infraestruturais da segurança pública? Bom, é notável – e ressaltado pelo testemunho dos oficiais de justiça que aparecem ao longo do documentário – o despreparo para lidar com aquela situação. Existiam dificuldades, desde a questão prática em conflito com a questão social – executar Sandro não seria muito agradável ao público, afinal ver miolos sendo estourados ao vivo geraria mil e uma complicações políticas, sociais e culturais – até no pouco treinamento dos presentes em negociar com o sequestrador para liberação e, possível prisão de Sandro. Os oficiais da justiça que aparecem e dão seu testemunho sobre o caso no documentário tentam utilizar de diversas ferramentas arguitivas para sair pela tangente quando se trata de criticar as instituições públicas de segurança em que trabalham, outros já declaram abertamente, mas suas identidades preservadas pelo anonimato. O Rio de Janeiro não é para amadores, muitos dizem. Dá para aumentar isso em relação ao país. O Brasil não é para amadores, muitos dizem. A conclusão do crime é a culminação dessa denúncia que o documentário carrega em seu texto e subtexto: Sandro sai do ônibus levando consigo uma das reféns e um dos soldados do B.O.P.E toma iniciativa para executar o alvo. Nesse momento no documentário, o coração pulula de receio e ansiedade, causado pela decisão da edição: tudo fica em câmera lenta, quadro por quadro, adiando ao máximo a tragédia final. A trilha sonora ganha tons horripilantes, que promove-se por ruídos e barulhos de tensão elétrica. O policial surge por fora da imagem, aproxima seu fuzil do alvo e… Erra seu disparo. Atinge a refém na cabeça enquanto Sandro cai ao chão desviando do projétil. No chão, muitos julgam Sandro por morto. Não. Não foi executado. Na resistência final, ainda dá dois disparos com seu revolver em mãos na refém já falecida. No caos desse momento, a população e a mídia correm em direção ao epicentro do problema, buscam manifestar seu ódio, sua vingança, descontar naquele que quebrou o status quo sua sanguinolência e a segurança pública mais uma vez se vê desfalcada de preparo. O público em geral toma, tenta chegar próximo, gritos e mais gritos, chutes, socos, policiais misturados aos civis que tem como objetivo o linchamento de Sandro! O anseio por promover a justiça com as próprias mãos – É povo carioca, parece que não é de hoje essa vontade, né?

Com muita dificuldade, Sandro é levado para a viatura, e ali, encerra-se o caso da maneira mais natural que se pode imaginar: é executado entre espancamentos pelos policiais. Sufocado, levado e afastado, sem direito a julgamento. Outra vida que é levada sem direito a indenização de todas as violências anteriormente sofridas. Outra vida que é silenciada duplamente. Uma pelas condições sociais e outra pelas condições físicas. Sandro não é de todo um anjo, é um manifesto do grande monstro que vive por trás dos panos na sociedade brasileira. Daquele que vê de todos os lados um inimigo, que se vê fora do sistema e se vê fora dos ritos sociais padronizados. Levado a loucura, levado ao máximo da instabilidade para no fim… Morrer enquanto criminoso, com cuspes, chutes e repúdios sociais. Mais um dia normal no Brasil. Surgem tantas questões, que já foram debatidas de tantas maneiras, estudadas de outras mil formas e, ainda assim, uma estrutura nefasta que continua em seu ciclo vicioso. Conscientiza-se em salas de aula, e depara-se com a “doutrinação”. Debate-se nos meios sociais, e se encara com o “mimimi”. Surgem novos projetos sociais, derrotadas pelo “direitos aos criminosos e fim aos direitos humanos”. Visa-se a ressocialização, atinge-se mais um massacre na favela.

É como diria o grupo musical Racionais MC’s:

Nego dramaCabelo crespo e a pele escuraA ferida, a chaga, à procura da cura
Nego dramaTenta ver e não vê nadaA não ser uma estrelaLonge, meio ofuscada
Sente o dramaO preço, a cobrançaNo amor, no ódio, a insana vingança
Nego dramaEu sei quem trama e quem tá comigoO trauma que eu carregoPra não ser mais um preto fodido
O drama da cadeia e favelaTúmulo, sangue, sirene, choros e velasPassageiro do Brasil, São Paulo, agoniaQue sobrevivem em meio às honras e covardias

A estrutura de classes brasileira faz nascer todos os dias novos Sandros, que multiplicam-se nos semáforos, nas esquinas, nos viadutos, nas cracolândias. Não há uma verdadeira resolução, o resultado nunca será de imediato, quem sabe a longo prazo com o espaço que as discussões étnicas e a consciência social se expandem, as novas gerações – que venham a superar a crise do aquecimento global – extirpem das manifestações sociais essas estruturas desiguais. Porém, por enquanto, continuemos a assistir ciclicamente essa violência brasileira, que aterroriza moradores e oficiais da justiça, que danifica cidadão e policial, que transforma em inimigo aquele que habita do outro lado do muro social. Para nós, resta aprender a descontruir nossas muralhas e enxergar seres humanos em vez de adversários da normatividade padronizada originária da classe média. Que aquele pão, aquele salgado, aquela moeda, não fique no plano ideal. Que nossos filhos, alunos, aprendizes se tornem seres humanos melhores do que nós, através da escola, da casa, da religião, da espiritualidade. Que as culturas originem futuros e não silêncios. Que não existam mais Candelárias, Carandirus, Ônibus 174 e etc.

Por um Brasil que não deixe invisível seus filhos mais carentes, seus filhos que trabalharam na lavoura, que fundaram essa terra com seu sangue escravo, com sua identidade uniu culturas e lutou por sua voz e segurança…

Afinal, essa guerra, essa violência, essa opressão… Tem cor. Tem dialeto. Tem geografia. Tem espaço. Tem identidade. Tem cultura. Tem a própria fisicalidade.


Filme: Ônibus 174
Elenco: Capitão Batista, Yvonne Bezerra de Mello, Luana Belmon, Claudete Beltrana
Direção: José Padilha, Felipe Lacerda
Roteiro: José Padilha
Produção: Brasil
Ano: 2002
Gênero: Documentário, Crime
Sinopse: O sequestro do ônibus 174 foi filmado e transmitido ao vivo pela televisão, cujas imagens são mostradas no documentário, porém um dos argumentos sustentado pelo autor do filme é que o rapaz em foco tenha sido vítima de um processo de exclusão social a tal ponto, que ele tenha se bandeado para o crime, não por escolha própria, mas por abandono por parte das autoridades do Estado do Rio de Janeiro. O documentário mostra o processo de transformação da criança de rua em bandido e sugere as causas da violência nas grandes cidades do Brasil.
Classificação: 14 anos
Distribuidor: Zazen Produções
Streaming: Telecine
Nota: 9,0

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2 thoughts on “CRÍTICA – ÔNIBUS 174

  1. era isso que o DOC quis passar, vitimando o bandido, e coIocando a vitima, como um ”efeito coIateraI” ” segundo o autor do coments..”Ônibus 174 é daqueles documentários que retorcem o espírito e a alma social daquele que testemunha a exposição nua e crua desse sequestro que denunciou tantos problemas infraestruturais da segurança pública, das percepções retorcidas de justiça da sociedade, da invisibilidade de determinados grupos sociais brasileiros e da desigualdade visível e estrutural que permeia pelas camadas relacionais dos seres humanos que habitam essas terras tupiniquins”…Taque pariI..que bosta isso! Não tive estomago foi pra Ier essa resenha!

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