É sempre polêmica a continuação de filmes que encerram tão bem seu ciclo narrativo, porém, o primeiro Tropa de Elite teve tantas problemáticas em sua trajetória de lançamento e recepção do público – tudo muito bem tratado na crítica já feita aqui no site – que José Padilha foi motivado para buscar das respostas diretas que anteriormente pareciam “ambíguas”. Afinal, por mais que o filme anterior explore todo o espectro dos danos psicológicos e físicos da violência ao redor do combate ao crime organizado, pouco se tocou na corrupção sistêmica presente no estado do Rio de Janeiro.
O primeiro recurso interessante não foi ignorar os levantamentos da narrativa anterior, mas, expor as consequências das decisões e atitudes tomadas. Seu início abraça toda a adrenalina e insanidade do filme anterior, estabelecendo, assim, ainda a imagem “problemática” do Capitão Nascimento, que tem conflitos ideológicos com o novo personagem: Diogo Fraga (Irandhir Santos), o cara dos Direitos Humanos. Logo de cara, após a introdução pesada – inspirada em um episódio real de Marcelo Freixo – se percebem as mudanças ocorridas na vida do protagonista Nascimento: ele e a esposa se divorciaram e, após esse momento, dedicou exclusivamente todos os anos posteriores para a Segurança Pública do Rio de Janeiro como Comandante do B.O.P.E.
Antes de adentrar profundamente – inclusive com os paralelos da atualidade – nos meandros e críticas do filme em relação aos problemas de corrupção pública no Rio de Janeiro, precisa-se ressaltar a qualidade técnica presente no longa metragem em todos os requisitos possíveis. A sagacidade da fotografia e da edição possuem uma fluidez que poucos outros filmes nacionais conseguem competir – abraços Cidade de Deus, claramente uma inspiração para a modelagem e roteirização de Tropa de Elite – atuações que são icônicas e cheias de suas frases inesquecíveis que tomam o dialeto popular brasileiro, um cadência narrativa que merece todo o reconhecimento, capaz de desbancar muitos thrillers internacionais de Hollywood. É uma clara evolução do primeiro longa, que eleva com maestria todos os seus pontos de qualidade e consegue vencer suas limitações. Apesar de todas essas afirmações, esse não é o ponto alto, não é a sua primazia principal. Somando todas essas características, enfim, chega-se no que há de maior qualidade em Tropa de Elite 2… Seu texto e seu subtexto.
A evolução do discurso crítico é visível quando o roteiro se inspira em um evento real ocorrido no ano de 2008 presidida pelo atual presidente da EMBRATUR Marcelo Freixo, que levou ao feito uma CPI que acarretou na prisão de mais de 200 milicianos na época. A narrativa dá o enfoque, então, na origem e desenvolvimento das milícias cariocas que adentram no embate hierárquico de poder e lucratividade do submundo do crime. De pouco em pouco se nota a maturidade plena que o filme atinge: até mesmo aqueles que são pintados de heróis no primeiro filme pelo público – Capitão Nascimento e os restantes dos membros do B.O.P.E – são peões da máquina pública corrupta que lucra imensamente em um mercado de latrocínio, narcotráfico, monopólio propagandista político e ocultação de cadáveres. Existe uma malícia não testemunhada anteriormente, que opta não pela narrativa mais sublime em relação à expor os problemas e a dinâmica polarizadora entre “heróis” e “vilões”, nota-se que todo o ambiente criminal gira em torno dos “vilões” disfarçados de “heróis”, que tem início nas mais baixas patentes da Polícia Civil até chegar ao governador do estado do Rio de Janeiro. É descarada a corrupção e, claro, porque o próprio estado não só permite, como colabora e é participante dos esquemas. Afinal, há mercado de maior lucro do que a favela?
E daí que entendemos o tamanho do domínio exercido, pois, a milícia controla todos os aspectos sociais e econômicos da favela: água, energia elétrica, gás, internet, aluguel, terrenos e transporte. A ausência do poder público e em nome da “segurança” surgem essas ocupações territoriais da milícia, que, no fim somente substituem o crime organizado por uma gestão com noções empreendedoras do submundo inacreditáveis de que existem nos paralelos da nossa realidade. Forma-se um curral eleitoral, controlador, violento e punitivo para aqueles que não seguem as regras estabelecidas por essas organizações paramilitares, que contam com o apoio dos grandes agentes do estado, onde todo mundo, quase todo mundo sai ganhando uma boa parcela de dinheiro. Aí que vem a maior sacada – nosso herói trágico grego Capitão Nascimento demora para tomar consciência do tamanho do chorume que adentrou quando é transferido para um maior cargo da Segurança Pública, auxiliando indiretamente no aumento territorial desses grupos. E, surge o segundo ponto mais crítico da questão das milícias: quem não segue a regra do jogo é executado, o silêncio se torna uma obrigação pela sua própria segurança e dos seus próximos. É incontável quantas vidas foram ceifadas por conta das ações milicianas que cobram uma taxa de segurança contra elas próprias nas comunidades, gerando uma pergunta: quantos não foram silenciados que nunca obtiveram oportunidade de buscar justiça? E o pior, quando um assassinato ganha notoriedade, levam-se anos e mais anos para que alguma luz seja colocada sobre o caso e ainda muito superficialmente – vulgo caso da Marielle Franco nos dias recentes que tem todo o potencial de causar um efeito dominó em prol de uma melhora considerável no combate à corrupção e ao crime organizado nas terras cariocas, porém, é esperar que não seja um potencial desperdiçado.
Daí advém que a montagem toda do filme exala uma sofisticação aprimorada do primeiro filme, afinal seu discurso está amadurecido, permeando pelos subterfúgios da corrupção que é sistêmica, caminhando para além do ciclo de violência entre os agentes de segurança pública e a favela, o protagonismo problemático é para muito além do crime organizado, tocando na inserção democrática dos corruptos e o aparelhamento público dessas organizações criminosas. Quem está à salvo nessa conta? Capitão Nascimento e sua icônica violência não adiantou de nada, seu resultado foi ter saído de um lugar e chegado no mesmo ponto sem resolução, pois, é somente um peão para aqueles que detém real poder. Sua consciência é abatida e para buscar o mínimo de redenção denúncia junto com Fraga as mazelas descobertas dentro do sistema. Mas, parafraseio as palavras da própria personagem: “o sistema é foda”, pois, quando a solução é exibida ao público sobre as prisões, o sistema automaticamente se renova, elimina os nomes problemáticos e se revitaliza através de novos aparelhos e agentes.
Esse “outro inimigo” é invisível, é permeável, disfarçando-se tal qual um camaleão e se aproveitando da ausência do estado para inserir um projeto extremamente lucrativo de proteção contra a si mesmo. Essa milícia apresentada no filme, na realidade empírica do público, ainda é um meio campo, afinal, ela fornece proteção e fluidez para a verdadeira máfia carioca que são os bicheiros, ponto a qual o filme não tocará tematicamente, porém, trabalhada exaustivamente na crítica sobre o documentário “Vale o Escrito”.
André Matias, segundo personagem de maior relevância na narrativa exibe a faceta ingênua e extremamente bem treinada pelo Capitão Nascimento. Tanto ele quanto Nascimento não possuem uma moralidade ambígua, refletindo um ideal fragmentado de honestidade e busca por uma real efetivação no combate ao crime, mas, não enxergam que possuem pouca relevância dentro da máquina, figuras públicas que sequencialmente são punidas e caminham beirando a insanidade conforme as verdades lhe são reveladas. André Matias é morto por essa ingenuidade, de não entender até a onde se estendia a corrupção e o predomínio do interesse privado sobre o público. Nascimento somente enxergará a real violência e poder quando seu próprio filho se torna vítima nesse conflito. E a milícia é projeto político poderoso, afinal, as favelas são grandes currais eleitorais que elegem esses que se dizem defensores e protetores da comunidade. Daí, entende-se o ponto fulcral de conclusão: a democracia falhou enquanto redemocratização, pois, a sistêmica corrupção violentíssima presente na Ditadura Militar só trocou de roupa e se vestiu de democrata. Não é de agora que se manifestam discursos de figuras políticas defendendo a legalização do Jogo do Bicho e da milícia, ignorando todo seu histórico de violência. No fim, o texto do filme visa apresentar uma crítica e incitar questionamentos revoltantes ao público. Público que abraçou símbolos conservadores e não se enxerga vítima daquele próprio político que tanto diz defender os interesses do povo. Talvez, somente talvez, deva fazer uma pergunta final: a qual povo ele está se referindo?
Filme: Tropa de Elite 2: O Inimigo Agora é Outro Elenco: Wagner Moura, André Ramiro, Tainá Müller, Sandro Rocha, Irandhir Santos Direção: José Padilha Roteiro: Braulio Mantovani, José Padilha Produção: Brasil Ano: 2010 Gênero: Drama, Ação, Crime Sinopse: Nascimento (Wagner Moura), agora coronel, foi afastado do BOPE por conta de uma mal sucedida operação. Desta forma, ele vai parar na inteligência da Secretaria de Segurança Pública do Estado. Contudo, ele descobre que o sistema que tanto combate é mais podre do que imagina e que o buraco é bem mais embaixo. Classificação: 16 anos Distribuidor: Rio Filmes Streaming: Globoplay Nota: 10 |