CRÍTICA – VALE O ESCRITO:  A GUERRA DO JOGO DO BICHO

CRÍTICA – VALE O ESCRITO: A GUERRA DO JOGO DO BICHO

E a jornada dos documentários não acaba. Até dei risadas no momento que iniciei a ideia para produção dessa crítica. O Rio de Janeiro parece protagonista dessas muitas palavras que venho dedicando às produções audiovisuais. Há uma espécie de fascínio que é emanado pelas terras cariocas, quase um reflexo de uma realidade micro que no fim se expande para a macro composição complexa do Brasil. Vale o Escrito é uma série documental feita pela Globoplay que conta a história intrínseca do famoso Jogo do Bicho e seus contraventores à toda violência, manipulação, formação mafiosa e a ascensão do Carnaval enquanto espetáculo. Algo que permeia pela popularidade brasileira, com uma história de sangue, execuções e torturas que são desviadas pela política do Pão e Circo chefiado pela cúpula do Bicho.

Episódio a episódio vemos uma retratação recheada de fotos e filmagens de época – trabalho exímio através dos diferentes acervos que a equipe da Globo dispõe para as relações históricas com os dias atuais, ligando passado, presente e futuro com a concretização advinda dessas gravações e fotografias – sobre a trajetória dos grandes contraventores do Bicho durante a década de 70 até a virada do século. A edição é sensual há ponto de deixar bocas abertas do quão bom é o design e as escolhas de cenas para a estruturação do seriado, basta assistir a abertura do documentário que possui aquele tom claro de inspiração na aberta do seriado Narcos da netflix. Sua trilha sonora que mistura samba, bossa nova, jazz e eletrônicos investigativos realçam toda sua estrutura de imagem, capturando em poucos minutos o público, relatando a ascensão e a decadência das famílias que controlam um sistema tão lucrativo e popular, com histórias de assassinato e execuções dentro dos membros. As entrevistas possuem uma riqueza de relatos única, afinal, muitos dali chegaram a conhecer os membros da alta cúpula, outros são membros oficiais da justiça que investigaram e lutaram contra essa máfia e, os mais importantes destaques: os membros atuais (vivos) que ainda desenrolaram as tramas advindas das mortes ocorridas nos herdeiros dos territórios do jogo na cidade carioca. Esses relatos, sejam de participantes ou daqueles que lutaram contra esse sistema corrupto e mafioso formam uma dupla face dessa contravenção: carisma e violência.

Carisma advém de que essa geração antiga da cúpula do bicho se torna especialista na limpeza da própria imagem. São figuras icônicas dentro do imaginário popular carioca, que sobem o morro, dão dinheiro para população e, pelo ponto principal: patrocinar, financiar o maior espetáculo ao ar livre: o desfile das escola de samba do Rio de Janeiro. Elevam ao espetáculo máximo que rege até hoje, competindo por títulos de campões com sambas enredos diversificados e cada vez mais criativos, com um fluxo de capital que exalta uma questão que nunca havia me ocorrido: da onde vem tanto dinheiro? Eis que o documentário elaborou e respondeu essa mesma questão ao longo de seus episódios. É incrível como a ausência do estado abriu caminhos para a ascensão desses homens, que lideram uma influência capaz de movimentar agentes do estado e atrair políticos para obtenção de favores e patrocínios em suas jornadas. Esses bicheiros são amados, exaltados e respeitados dentro das comunidades carentes, principalmente por aqueles que vivenciaram seus momentos: levam comida, brinquedos, doam dinheiro à rodo e constroem uma infraestrutura social antes nem mesmo sonhada por aqueles que viveram e vivem à margem da sociedade. As favelas gritam seus nomes como grandes heróis do povo humilde, assim, estendem suas raízes ao máximo pela formação dessa figura ambígua, onde não se identifica as sombras pérfidas que habitam por trás dessas personalidades.

Violência, porque são mafiosos relacionados à todo tipo de feitoria criminosa: jogos de azar, cassinos ilegais, tráfico de drogas e contrabando. É assustador para aquele que vai despreparado assistir ao documentário com a exposição muito pouco censurada das execuções capturadas por câmeras públicas, cadáveres sendo retirados e fotografias das vítimas e participantes desse esquema. Sua relação com o período do regime militar (1964-1988) é assustadora, pois

“Assim que terminou o período mais sangrento do regime militar, o desmonte da máquina de torturar, matar e desaparecer com os corpos das vítimas frustrou os agentes da repressão. Muitos se sentiram traídos e abandonados. De volta à farda e à rotina enfadonha dos quartéis, viraram presas fáceis. E foi aí, entre os anos 1970 e 1980, que os chefões do bicho deram o bote. Ofereceram um projetor de poder que setores radicais julgaram perdido. Nos últimos suspiros da ditadura, a organização criminosa serviu de porto seguro, uma terra de oportunidades para quem tivesse disposição e topasse ser recrutado para compartilhar o vasto conhecimento adquirido nas masmorras do regime” (JUPIARA; OTAVIO, p. 10, 2022).

Talvez aqui seja o único erro drástico do documentário – pois, por mais que seu recorte sejam nos protagonistas dos embates internos e externos das famílias dos bicheiros ao longo do fim dos anos 1990 e início dos anos 2000 – não exercem o mínimo esforço dessa correlação intensa que há entre o jogo do bicho e os porões da ditadura. Capitão Guimarães (figurão do Carnaval e um dos poucos dessa velha geração ainda vivo nos dias atuais) foi torturador durante o Regime Militar, posteriormente expulso do exército por contrabando e adentrando de vez no mundo da contravenção. Anísio, outro grande nome da contravenção e do carnaval (diretor e patrono da Beija-Flor), exaltou vários sambas enredos com tons ufanistas e patrióticos que agradavam por completo a cúpula de vermes que governava o Brasil na época:

Brasileiros

Estamos em Nova Era

E o nosso Brasil espera

Uma juventude feliz

Vamos estudar

Aprender para ensinar

Queremos ver o nosso Brasil brilhar

Bem que nosso ilustre presidente disse

“Ninguém segura mais este país”

Esse meu Brasil é uma parada

Minha pátria idolatrada

Como é lindo esse torrão

Abertura de estrada

Ligando toda extensão

Transamazônica

Ponte Rio-Niterói

E metrô na Guanabara

Construções de viadutos

Sonhos de grande vulto

Hoje a se realizar

Embratel

Comunicação com o mundo inteiro

Ês um país tropical

Terra do samba, futebol e carnaval.

 

Irônico exaltarem tantos os projetos nacionais que foram de mal a pior, com problemas infraestruturais que na democracia recente brasileira caíram nas mãos da corrupção e processos que incham os custos do estado em executar – Abraço Transamazônica que abriu a porteira para o desmatamento e grilagem, papo para outro documentário futuro. Essa relação pode vir a ser questionada pelas fontes históricas, ligando aquela chave famosa de que é uma “narrativa” da esquerda para criticar esses chefões do bicho e os militares, que sua relação salvou o Brasil da “subversão” dos radicais que queriam implantar o comunismo no Brasil. Mas, nada é mais impactante do que as falas de Paulo Malhães (torturador do regime militar) em seu depoimento na Comissão da Verdade, onde relata tudo que presenciou nos porões da ditadura, mas sua trajetória e relação com o bicheiro Anísio, vivendo muito tempo dos lucros sangrentos advindos da contravenção. Esses membros – muitas vezes – expulsos do exército encontram um lar para seus talentos com os bicheiros, sendo capacitados e exímios nas habilidades de executar concorrentes, desfiar seus crimes e ocultar cadáveres de vítimas com nomes importantes. Por fim, ainda há a conexão intensa dos bicheiros com os grupos paramilitares – muitos financiados por esses mesmos bicheiros – e policiais corruptos, ressaltando que o jogo do bicho é a parte mais alta dessa rede criminosa que infecta quase que por completo o estado do Rio de Janeiro.

Em Vale o Escrito é exposta o quanto a “máfia do jogo se organizou, se diversificou e cresceu. Conhecimentos de logística, estado-maior, administração financeira, divisão de trabalho e espionagem moldaram o tamanho e a força da mais estruturada facção criminosa do país” (JUPIARA; OTAVIO, p. 11, 2022). Grande parte dessa “modernização” do jogo do bicho é creditada ao Capitão Guimarães que foi quem concebeu e conseguiu consolidar o projeto de formação da alta cúpula da contravenção. Um equilíbrio é atingido, tal qual os clássicos filmes de máfia hollywoodianos, entre os grandes “capôs” brasileiros para evitar conflitos que fragilizassem seus territórios e seu poder sobre a prática da contravenção. Por um lado, isso trouxe estabilidade durante um período considerável para essas famílias, mas simultaneamente é uma aliança frágil, com uma tensão de fácil destruição. Equivalente às antigas monarquias, os filhos herdam o império do pai e, como as tramas novelescas medievas, o filho nunca segue a mesma tendência do pai. As coisas desandam pelos herdeiros, que tramam os mais variados esquemas para monopolizarem as propriedades dos pais, com um seguimento de terríveis assassinatos e execuções em plena luz do sol em ruas movimentadas do Rio de Janeiro. Um pano cheio para inspiração de tramas literárias sobre o crime organizado, com projetos, tentativas e contra-tentativas de manutenção do poder sobre o jogo do bicho, que ao longo dos anos deixa bem claro que não está envolvido somente com as apostas, englobando outras atividades de corrupção e criminosas.

Por um lado o documentário tangencia em se aprofundar nas questões do regime militar, por outro é ousado em explorar as conexões de Adriano da Nóbrega com a prática da contravenção do bicho. A entrevista com sua esposa é rica de conteúdo e o que surpreende é sua fala declarada e aberta da violência manifestada pelo seu marido enquanto oficial do BOPE e posteriormente como o nome mais famoso dos esquadrões da morte contemporâneos do estado do Rio de Janeiro. Até mesmo Fabrício Queiroz aparece para dar falas sobre Adriano da Nóbrega e a Globo faz questão de ressaltar – já em suas cenas iniciais do primeiro episódio – a conexão do líder do Escritório do Crime com a família Bolsonaro e suas práticas de rachadinha. Uma figura citada no documentário como um “arquivo vivo” sobre a criminalidade e corrupção sistêmicas das instituições públicas do Rio de Janeiro. Por fim, estabelecem conexões com o assassinato da vereadora Marielle Franco, deixando aos ares os diferentes e variados nomes possivelmente envolvidos.

Outro ponto fraco erguido pelo documentário – que pode muito bem agradar ao público em geral – é o quando gasta tempo em uma sensacionalização das relações quase novelescas dessas famílias dos bicheiros, dando tons em sua edição quase romantizados do estilo de vida e as práticas. Por mais que tenhamos sempre o contra-ponto dos agentes de segurança pública que combateram esses criminosos, não há um tom tão investigativo – apesar de ser impressionante a equipe de jornalismo ter conseguido obter relatos dos protagonistas dessa prática e desses eventos trágicos – que se perde na estruturação de uma relação empática com os diversos rostos que surgem ao longo da exposição. A violência nua e crua – apesar de impactante – muitas vezes não serve para nada além do “impacto” do público com aquela violência, com a exibição de execuções sem cortes possuindo contexto algum ao que está sendo narrado. Entre essas duas faces, há um rico acervo histórico para o presente e para o futuro daquele que se interessar em adentrar esses meandros complexos e labirínticos do cenário criminal carioca.

É interessante o quão inteligentemente foi roteirizado, comprometendo muito pouco a equipe de jornalismo, que deixa através das falas das testemunhas e pelas insinuações do narrador Pedro Bial as conclusões de culpados e vítimas para o público que assiste, abrindo caminhos para diversas interpretações que realçam o estilo novelístico de moral que é elaborada pela produção: anjos ou demônios? Heróis ou vilões? O que cada um é dentro desse jogo de tabuleiro territorial do Rio de Janeiro que ceifou tantas vidas? Os tons de cinza estão ali para serem capturados por alguém sagaz, mas pode muito bem gerar erros narrativos que tendem muito mais a gerar uma ficção mitológica em torno das figuras que tal qual Sérgio Leone em “Era uma Vez na América” (1984) já havia respondido: o lugar dessas pessoas é o lixo!

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

JUPIARA, Aloy; OTÁVIO, Chico. Porões da Contravenção: jogo do bicho e ditadura militar: a história da aliança que profissionalizou o crime organizado. RIO DE JANEIRO, Ed. Record, 2022.

MANSO, Bruno Paes. A República das Milícias: dos esquadrões da morte à era bolsonaro. SÃO PAULO: Ed. Todavia, 2020.


Filme: Vale o Escrito: A Guerra do Jogo do Bicho
Elenco: Shanna Garcia, Tamara Garcia, Miro Garcia, Capitão Guimarães, Castor de Andrade
Direção: Fellipe Awi, Ricardo Calil, Gian Carlo Bellotti
Roteiro: Fellipe Awi, Ricardo Calil
Produção: Brasil
Ano: 2023
Gênero: Documentário, Crime, Biografia
Sinopse: O jogo do bicho no Rio de Janeiro é controlado por famílias cujos chefes são também patronos de escolas de samba. Duas dessas famílias vivem sangrentas guerras de sucessão.
Classificação: 16 anos
Distribuidor: Globoplay
Streaming: Globoplay
Nota: 9,0

Sobre o Autor

Share

Deixe um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *