CRÍTICA – OS GAROTOS DE FENGKUEI

CRÍTICA – OS GAROTOS DE FENGKUEI

No ano passado, a comunidade cinematográfica recebeu o que, pelo menos para mim, foi uma das notícias mais infelizes do ano. O realizador chinês Hou Hsiao-hsien, responsável por grandes obras da Nova Onda Taiwanesa de cinema, anunciava que estava se aposentando após receber o diagnóstico de demência. Seu último lançamento foi A Assassina, em 2015. Hoje, escrevo sobre o drama de amadurecimento Os Garotos de Fengkuei (1983), um dos primeiros trabalhos de Hou. O filme está disponível para assistir na Filmicca.

Os Garotos de Fengkuei acompanha um grupo de três amigos que vivem na ilha de Fengkuei, no Taiwan. Estes jovens, que já não estão mais na escola, passam seus dias vadiando pelas ruas, entrando em brigas e buscando confusão com as gangues locais, até que em certo ponto, eles decidem se mudar para outra cidade em busca de trabalho e novos ares.

Focado principalmente no personagem de Ah-ching (Doze Niu Cheng-Tse), o filme acompanha a jornada dos três jovens irresponsáveis e inconsequentes ao mesmo tempo em que insere, em meio as “aventuras” dos rapazes, algumas lembranças da infância de Ah-ching, de sua relação com seu pai, que é, de acordo com um de seus amigos, “uma celebridade em Fengkuei”. A medida em que o tempo passa, acompanhamos a evolução desse personagem, que logo ao chegar à cidade de Kaohsiung se apaixona por sua vizinha Hsiao Hsing (Lin Hsiu-Ling), que namora um conhecido de Fengkuei.

São notáveis já nesta obra os traços de filmes futuros de Hou Hsiao-hsien como o drama autobiográfico Um Tempo para Viver, Um Tempo para Morrer (1985). Ao apresentar uma história centrada na juventude taiwanesa o diretor faz um retrato da época e de sua própria juventude, criando empatia pelos personagens apesar das “falhas” de caráter que por algumas vezes se mostram em suas atitudes. Esses jovens, inclusive, lembram em certo ponto as crianças dos filmes do japonês Yasujirô Ozu, que quase sempre eram desobedientes e travessas com os mais velhos.

Embora trate de temas diversos em seus filmes, Hou sempre se manteve fiel, se puder dizer assim, à uma essência própria ao produzir seus longas-metragens. Trabalhando em parceria com a roteirista Chu Tien-wen, responsável pelos roteiros de muitos dos filmes de Hou – A City of Sadness, de 1989 e Millennium Mambo, de 2001, para citar alguns exemplos – a colaboração entre os realizadores se mostrou bastante frutífera e regular na qualidade das obras ao longo dos anos.

Em Os Garotos de Fengkuei, quando olhamos além da superfície de jovens aparentemente despreocupados, os dramas que cercam a mente do protagonista Ah-ching se apresentam. Sempre que um dos flashbacks de sua família e cidade natal aparecem para o espectador e para Ah-ching, podemos perceber uma pequena mudança no jovem que aos poucos se transforma em homem, quando cada uma dessas lembranças aumenta gradativamente a bagagem emocional desse personagem.

O que se percebe também é que os momentos de brincadeiras, responsáveis na primeira parte do filme por trazer algum humor à narrativa, se tornam mais escassos ao longo da obra. O grupo de amigos se mantém o mesmo, porém, a realidade ao seu redor é que está em constante mudança. Ah-ching, por ser o protagonista do filme, parece ser aquele que mais é afetado por essas mudanças.

Há, inclusive, uma passagem maravilhosa da obra que talvez seja a minha favorita, que é quando Ah-ching e seus amigos sofrem um golpe de um homem que vende “ingressos” para um cinema em um prédio abandonado. Ao chegarem ao andar onde o cinema supostamente estava localizado, os rapazes se deparam com a vista da cidade a partir de uma grande janela. Um deles debocha da grande tela em cores que eles estão vendo e por alguns segundos vemos Ah-ching olhar o horizonte e perceber que eles não estão mais na pequena ilha onde costumavam viver. Este é um grande ponto de virada para o protagonista que cada vez mais se afasta da criança de Fengkuei.

Como qualquer drama de amadurecimento, em Os Garotos de Fengkuei assistimos a narrativa se encaminhar para momentos já esperados. O que cria empatia no espectador de alguma forma é o modo com o qual Hou Hsiao-hsien conduz o enredo de seu protagonista, que nem de longe é um personagem exemplar, mas que, ao ver o quão cruel é a vida adulta, se mostra empenhado em matar a juventude dentro de si para renascer como um homem responsável por suas ações.

A passagem pelo primeiro amor do protagonista, retratada de forma quase leve, é um acerto na narrativa do filme, uma vez que a personagem de Hsiao Hsing é praticamente a única mulher em cena durante o longa. Esta figura, que não é explorada o suficiente dentro deste enredo, se parece em muitos pontos com o protagonista, porém, ambos os indivíduos estão em tempos diferentes de seus próprios amadurecimentos.

Há ainda uma pequena participação do próprio Hou Hsiao-hsien em certo ponto da obra. O diretor, discípulo de Edward Yang – outro nome importantíssimo da Nova Onda Taiwanesa – já havia atuado em filmes de Yang, porém, em um filme de sua autoria, essa foi a primeira e única vez. Sua pequena aparição em Os Garotos de Fengkuei não acrescenta tanto à obra, seu personagem é apenas uma figura de passagem, porém, é sempre uma alegria sutil ver um diretor participar de seu próprio filme.

Hou Hsiao-hsien é um grande diretor que, infelizmente, não trará mais de sua visão de mundo às telas. Felizmente, temos vários de seus filmes disponíveis para acompanharmos um pouco de seu belo trabalho. Os Garotos de Fengkuei é, sem dúvida, uma obra muito importante de sua filmografia, peça chave na condução de sua formação como o grande realizador que se tornou. Acompanhar a jornada de Ah-ching e seus amigos, bem como suas frustrações e pequenos momentos de graça, é uma experiência muito valiosa, tanto pela identificação com a história, quanto para conhecer mais do trabalho de Hou.


  FilmeFēngguì lái de rén (風櫃來的人)
Elenco: Doze Niu Cheng-Tse, Lin Hsio-Ling, Shih Chang, Chao P’eng-chue, Tou Chung-hua, Yang Lai-yin.
Direção: Hou Hsiao-hsien
Roteiro: Chu Tien-wen
Produção: Taiwan
Ano: 1983
Gênero: Drama
Sinopse: Ah-ching e seus amigos acabaram de terminar a escola em sua vila de pescadores na ilha e agora passam a maior parte do tempo bebendo e brigando. Três deles decidem ir para a cidade portuária de Kaohsiung em busca de trabalho. Eles encontram um apartamento por meio de parentes e Ah-ching se sente atraído pela namorada de um vizinho. Lá eles enfrentam a dura realidade da cidade grande.
Classificação: 14 anos
Distribuidor: Evergreen Film Company
Streaming: Filmicca
Nota: 8,5

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