“Notas sobre o cinematógrafo”, de Robert Bresson, lançado em 1975 pela Gallimard, serviu e continua servindo como uma espécie de guia para velhos e novos cineastas mundo a fora. O livro é uma coletânea de anotação que o cineasta francês foi escrevendo ao longo das décadas em que se dedicou à direção de filmes seminais como o extraordinário “Um condenado à morte escapou”. Não são quaisquer anotações. Cada uma delas destaca-se pela concisão, exatidão e pela sabedoria adquirida pacientemente ao longo do tempo.
Uma das frases pinçadas do livro diz o seguinte: “Tenha certeza de ter esgotado tudo o que se comunica pela imobilidade e pelo silêncio”. Em “Uma vida sem ele”, quando a jovem Joan Verra encontra pela primeira vez o pai de seu filho, o jovem Doug, os dois, imóveis, trocam olhares por um instante. De modo sutil, a montagem dilata o tempo da troca de olhares e imprime nela uma intenção clara na dinâmica entre o campo e o contracampo, dispensando a necessidade de diálogo. Não demora muito e o agora casal de namorados está batendo carteira de transeuntes desavisados, numa alusão ao clássico “Pickpocket”, também de Bresson.
“Uma vida sem ele”, portanto, bebe numa fonte preciosa, que dá grande valor aos detalhes, rigoroso no trabalho com os atores, minimalista na forma. Tanto é assim que quase todo o filme está inundado delicadamente de um azul-clarinho muito bonito, com a sua paleta de cor girando em torno dele. Vamos descobrir mais tarde o motivo trágico dessa escolha numa demonstração de como a fotografia e a dramaturgia estão intrinsecamente ligadas.
Entretanto, não acho o roteiro tão bom. O que salva “Uma vida sem ele” do mesmo destino daqueles filmes mornos exibidos na clássica sessão da tarde é o trabalho extraordinário da atriz Isabelle Huppert. Não poderia ser diferente. A atriz francesa empresta seu talento à personagem Joan na sua luta silenciosa, contida, contra todas as ausências que orbitam sua vida. Porque, para mim, o longa-metragem trata sobretudo disso, da falta que as pessoas fazem em nossas vidas, dos amores ausentes: o companheiro que voltou para a ex, a mãe que abandonou a família num gesto abrupto e insensato e o filho querido vivendo em outro país— sobre ele não posso dizer muita coisa. O leitor entenderá quando assistir ao filme. É preciso certa paciência para entrar nele de vez, se envolver com seus personagens, e finalmente entender do que se trata sua narrativa.
Há ainda o humor sutil que faz contraponto ao drama. Ele está presente nas cenas do escritor Tim Ardenne, construído de modo propositalmente caricato. Um antibresson, portanto. Tim encarna a figura do escritor de sucesso que finge sofrer sabe-se lá do quê. Um mimado grandalhão como muitos que há por aí, principalmente no campo das artes. Ele é o companheiro atual de Joan e a relação dos dois também é marcada por lacunas — afastamentos e reaproximações. O humor bem dosado é um respiro. E ele nos desarma para o que está por vir. O evento que transformará para sempre a vida de Joan Verra.
Encerro a breve crítica com uma anotação que considero ser a mais inspirada do cineasta francês, falecido em 1999. Ela não serve somente para “Uma vida sem ele”, mas para todos os filmes: “De duas mortes e de três nascimentos. Meu filme nasce uma primeira vez na minha cabeça, morre no papel; é ressuscitado pelas pessoas vivas e os objetos reais que eu utilizo, que são mortos na película, mas que, colocados numa certa ordem e projetados sobre uma tela, se reanimam como flores na água”. “Uma vida sem ele” é uma flor sobre um lago azul- claro.
Filme: About Joan (Uma Vida Sem Ele) |