CRÍTICA – THE MOTHER OF ALL LIES

CRÍTICA – THE MOTHER OF ALL LIES

Combinando elementos estéticos, narrativos e temáticos de forma deslumbrante, “The Mother of All Lies”, dirigido por Asmae El Moudir, é sem dúvida um dos grandes achados do Festival de Cannes de 2023. Vencendo dois prêmios no festival, um deles de melhor direção, El Moudir se utiliza de maquetes meticulosamente construídas por seu pai, nas quais, pela ausência de imagens e fotos, recriam um espaço de memória familiar e contextualizam um momento marcante, mas pouco falado, dos eventos históricos que marcaram o Marrocos, especificamente os 1981 Bread Riots (Levantes do Pão).

Uma das características mais marcantes do filme é o uso inventivo e simbólico das maquetes, que representam não apenas os cenários físicos dos acontecimentos, mas também as emoções e as memórias contidas na família de Asmae El Moudir. As maquetes, juntamente com a iluminação cuidadosamente escolhida e a trilha sonora de suspense, criam uma atmosfera que mergulha o espectador na narrativa. Esses recursos visuais e sonoros são particularmente eficazes na ausência de fotos e imagens reais dos eventos do massacre, permitindo que a diretora conte a história de maneira envolvente e emocionalmente impactante.

A ausência de fotografias que é um elemento crucial e impactante em “The Mother of All Lies”. Logo no início Asmae El Moudir questiona a falta de fotos de sua infância. Ao longo da narrativa, fica claro que essa ausência foi resultado da avó de El Moudir, que não permitia e não tirava fotos de seus filhos. As fotografias, como símbolos importantes na preservação da memória, são negadas por essa atitude da avó. Essa representação sutil e poderosa representa a censura imposta por um Estado autoritário, que busca reprimir a memória de um povo, sua cultura e seus costumes. Não é por acaso que uma das primeiras cenas do filme retrata a jovem El Moudir tirando sua primeira foto durante uma celebração cultural conhecida como “Noite do Decreto” (Laylat al-Qadr). Essa cena estabelece desde o início a importância da memória e a resistência contra a tentativa de apagá-la.

Esteticamente deslumbrante, a forma como “The Mother of All Lies” narra os acontecimentos é absolutamente cativante. A combinação de depoimentos emocionantes dos familiares e a narração em off da própria diretora proporciona uma experiência cinematográfica excepcional. As maquetes meticulosamente elaboradas, retratando a casa, a rua onde ocorreu o massacre e até mesmo a prisão, desempenham um papel fundamental na construção da atmosfera. Em particular, é impactante quando um dos tios de Moudir relata o episódio em que foi preso injustamente e tentou fugir de uma prisão superlotada, onde pessoas sufocaram em um espaço de apenas 12 metros quadrados. O detalhismo das maquetes, combinado com a luz cintilante em tons de vermelho e azul para simular uma sirene, juntamente com os ruídos de pessoas gritando e tiros, cria um realismo sonoro que envolve o espectador de maneira poderosa.

Esses elementos não apenas trazem um realismo vívido, mas também carregam um forte simbolismo.
O contraste entre as imagens reais de protestos e as cenas das maquetes representa uma conexão entre o passado e o presente. As imagens reais simbolizam a luta atual por justiça e pela memória das vítimas, enquanto as maquetes representam a reconstrução do passado. Esse contraste simboliza a importância de enfrentar e confrontar a verdade histórica, mesmo que seja desconfortável, e de não esquecer as injustiças e tragédias ocorridas. Não obstante a diretora se pergunta: “Quando tiver a idade da minha mãe eu precisarei voltar? Ou terei medo?

A forma como o filme alterna entre os momentos de contar a história e os momentos em que mostra a família reunida é particularmente significativa. Essa alternância cria uma dinâmica que equilibra a dimensão coletiva dos eventos históricos com a perspectiva íntima e pessoal da família de El Moudir. Ao mostrar a união familiar e a forma como cada membro lida com suas próprias memórias e experiências, o documentário transmite uma sensação de intimidade e conexão emocional, permitindo ao espectador se envolver profundamente com os personagens. Personagens esses que desempenham papéis importantes na narrativa.

A diretora, Asmae ElMoudir, compartilha suas experiências pessoais e reflexões sobre o período prévio e pós-massacre. Ela descreve a vida de uma jovem de 12 anos no pós-massacre, destacando os desafios e as memórias difíceis que carrega. Sua jornada como cineasta e sua busca pela verdade são elementos fundamentais na narrativa. Os vizinhos de ElMoudir vivenciaram o episódio do massacre e carregam a dor daquele momento. Ao contar suas histórias e relembrar os eventos através das maquetes, eles conseguem liberar a dor que estava presa dentro deles. Suas narrativas são cruciais para a reconstrução dos eventos e para a compreensão do impacto emocional que eles tiveram na família. A mãe de ElMoudir é retratada como uma pessoa doce, afetuosa e carinhosa. Ela mentiu para a filha sobre uma foto de infância, numa tentativa de protegê-la da tristeza e da dor relacionadas ao massacre.

E, finalmente, a avó de ElMoudir é uma das personagens centrais do documentário. Ela é retratada como uma pessoa fechada, amarga e “estraga-prazeres”. Ela não aceita o fato de ElMoudir ser cineasta e expressa constantemente sua preferência de que ela seja jornalista. A avó é fruto da repressão do governo marroquino durante sua época, e suas atitudes refletem a repressão que ela própria sofreu e como ela transmitiu isso para sua família. Ela se recusa a lembrar do massacre e rejeita qualquer forma de lembrança, como tirar fotos ou participar das maquetes.

No geral, “The Mother of All Lies” é uma obra cinematográfica poderosa e impactante. Ao explorar a história do massacre de 1981 no Marrocos através da perspectiva pessoal da diretora e de sua família, o filme transcende a mera narrativa histórica e mergulha no âmbito da memória, da dor e da busca pela verdade. Com sua estética envolvente, narrativa habilidosa e temas universais, o filme deixa uma marca profunda no espectador, despertando reflexões sobre o poder do cinema em trazer à tona memórias dolorosas e ressignificar o passado.


Filme: Kadib Abyad (The Mother of All Lies)
Elenco: Ouardia Zorkani, Zahra Jeddaoui, Said Masrour, Abdallah Ez Zouid, Asmae El Moudir e Mohammed El Moudir.
Direção: Asmae El Moudir
Roteiro: Asmae El Moudir
Produção: Insight Films
Ano: 2023
Gênero: Documentário
Sinopse: A busca de uma mulher marroquina pela verdade se entrelaça com uma teia de mentiras na história de sua família. Como filha e cineasta, Asmae funde história pessoal e nacional enquanto reflete sobre os Levantes do Pão de 1981, estabelecendo conexões com o Marrocos contemporâneo.
Classificação: 14 anos
Distribuidor: sem distribuição
Streaming: Indisponível
Nota: 10,0

Filme exibido no Festival de Cannes de 2023

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