47ª MOSTRA SP – O MAL NÃO EXISTE

47ª MOSTRA SP – O MAL NÃO EXISTE

O Mal não Existe (Aku wa Sonzai Shinai, 2023) é a produção mais recente do diretor e roteirista Ryusuke Hamaguchi (Drive my Car ou Doraibu mai kâ, 2021). O filme, exibido na sessão Perspectiva Internacional da 47ª Mostra de SP, foi um lançamento “surpresa” durante o Festival de Veneza deste ano, saindo de lá vencedor do grande prêmio do Júri e de Crítica. A história gira em torno de um pequeno vilarejo ao pé de uma montanha que se vê ameaçado por construtoras que pretendem transformar o local em uma área de turismo.

É bastante notável nessa obra a divisão em atos, se pudermos dizer assim, de sua narrativa. A primeira parte é lenta e quase monótona, uma vez que utiliza seu tempo para desenhar um retrato dos moradores desse vilarejo. A introdução belíssima, que adentra a floresta em meio a neve, escolhe exibir somente o céu em meio aos esqueletos das árvores no inverno. Demoram alguns bons minutos até que haja algum diálogo e, ainda assim, as palavras são escassas entre personagens que interagem pouco na tela. Diferente de Drive my Car (2021), que leva cerca de 40 minutos para exibir seu título, em O Mal não Existe assistimos as palavras “Mal” e “Existe” sendo exibidas meticulosamente antes da palavra “Não”.

O protagonista Takumi (Hitoshi Omika), homem de poucas palavras, vive sozinho com sua filha pequena, Hana (Ryo Nishikawa), e é nessa relação que se centra toda a narrativa de O Mal não Existe, que apresenta, nesta primeira parte, a relação entre os moradores da região. É a partir da segunda parte que as coisas começam a se agitar no pacato vilarejo, quando dois funcionários de uma agência de talentos fazem uma visita para apresentar um projeto de Glamping, que une precariamente as palavras camping e glamour para oferecer uma “experiência” gourmetizada do ato de acampar.

A construção desses indivíduos é tão crível que quase podemos sentir a revolta crescendo em nosso interior. A apresentação estereotipada das pessoas da cidade que agem como se os moradores da montanha fossem idiotizados não é nenhuma surpresa ao espectador e há, em certa medida, um tom de humor nas falas e atitudes desses personagens que nos levam a questionar quem é de fato o idiotizado ali. Hamaguchi conduz muito bem essa primeira interação do “mundo exterior” com o microcosmo da montanha, que para a surpresa das pessoas da cidade, muito tem a dizer sobre a questão que os levou até ali.

A medida em que os problemas ao redor da construção do glamping na região começam a crescer, assistimos à típica reação daqueles que estão no comando. Ao final, tudo parece ser uma questão de poder, seja de discurso ou poder financeiro, que geralmente estão aliados. A chave dessa relação entre cidade e montanha está na ideia errada que a primeira tem da segunda. É extremamente importante para a narrativa de O Mal não Existe que esses personagens ajam da maneira que agem ao caminhar para a terceira parte do filme.

Ryusuke Hamaguchi é cirúrgico ao apresentar, lá nos primeiros minutos do longa, a relação entre pai e filha, que na última parte será novamente o centro da narrativa. Não é aleatória a escolha do diretor de nos apresentar situações que aparentemente, se analisadas superficialmente, nada tem a dizer ao espectador. As cenas entre Takumi e Hana na floresta estão entre as melhores e mais importantes da obra de Hamaguchi, e é ali onde devemos depositar toda a nossa atenção.

Ao chegar na última parte, os maiores conflitos da narrativa de O Mal não Existe são colocados em jogo, e é quando tudo acontece no filme. Se o desenvolvimento nas duas partes anteriores fora um tanto lento, é aqui que realmente as coisas se encaminham para um desfecho, que de certa forma se mostra bastante aberto à interpretação do espectador.

Acredito que houve e haverá ainda muitas análises do final dessa obra, e acredito também que Ryusuke Hamaguchi escreveu seu roteiro pensando nisso. O título de seu filme, que na versão inglesa escolheu adotar a versão original, é muito importante para o enredo a que somos apresentados. Ao final, a afirmativa de que o mal não existe se transforma em uma pergunta, e se pensarmos muito nessa questão a partir dos acontecimentos do filme, podemos acabar sendo levados a lugares bastante sombrios.

O Mal não Existe não é um filme sobre os impactos das grandes construtoras no meio-ambiente, ainda que sua narrativa se atenha em iniciar uma discussão sobre esse assunto, que embora de grande importância para o cenário atual do mundo, não seja aqui o seio da questão entre os moradores da montanha e os funcionários da construtora. Há uma frase popular que diz “o diabo está nos detalhes”. Suponho que essa frase seja a chave para pensar o filme de Hamaguchi. De que lado realmente está o mal, e se ele de fato existe, que tipo de atitudes podem ser consideradas realmente más e como podemos julgá-las?

Pensar conceitos abstratos como mal e bem pode nos levar a um caminho profundo e sem volta, e imagino que a proposição de Ryusuke Hamaguchi não vá tão além assim. Seu filme abre a discussão de forma bastante efetiva, mas não se detém a encerrá-la. Seu papel é o de jogar o objeto artístico no ar e deixar a interpretação ao seu espectador, que pensará a obra a partir de suas próprias vivências e subjetividades.

O Mal não Existe foi, sem dúvidas, meu filme favorito da Mostra SP, e encerro minha participação nela com essa obra belíssima, esperando ansiosamente seu lançamento no Brasil para visitá-la mais uma vez.


  Filme: Aku wa Sonzai Shinai (O Mal não Existe)
Elenco: Hitoshi Omika, Ryo Nishikawa, Ryuji Kosaka, Ayaka Shibutani, Hazuki Kikuchi, Hiroyuki Miura.
Direção: Ryusuke Hamaguchi
Roteiro: Ryusuke Hamaguchi
Produção: Japão
Ano: 2023
Gênero: Drama
Sinopse: Takumi e a filha, Hana, vivem em um vilarejo nos arredores de Tóquio. Lá, gerações de famílias levam uma vida simples, ditada pelos recursos e ciclos da natureza. Takumi descobre que duas grandes empresas planejam construir, perto de sua casa, um local que será um camping de luxo para turistas que desejam “escapar” da cidade. Mas a construção terá impacto no fornecimento de água e será uma ameaça ao equilíbrio ambiental do lugar.
Classificação: 12 anos
Distribuidor: Imovision
Streaming: Indisponível
Nota: 8,9

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