MADALENA

MADALENA

Sempre que me deparo com a informação exibida no final de Madalena, sinto-me quase que como quem pudesse se lembrar de ter vivido ou analisado o fim da Idade Média e o início daquela era do Renascimento e Iluminismo. Tudo isso, para quem?
Algumas tragédias são sempre muito mais acolhidas do que outras. E não importa somente onde e quando ocorrem ou por onde seus contundentes rastros se espalharão. É o lembrete dos ecos do irremediável e mais estrondoso choque, a manifestação devastadora do princípio misógino: a divisão entre EU e ELA/ELE.

Em “Madalena”, filme dirigido por Madiano Marcheti, o movimento de contramão, ou melhor, contradição ou hipocrisia, é muito bem evidenciado. Porque no meio do processo de expansão do acesso à informação (veja que não há democratização), temos na plena e fecunda luz do dia ou mesmo no silêncio gritante da noite, ecos de um desespero sequer noticiado ou atendido. Em “Madalena” é no âmbito do que há de ordinário, comum, banal, que se constrói a tragédia que, infelizmente, também nos é cotidiana Quanto a isso, já nos acostumamos e também por isso, Madalena enfrenta mais uma batalha: junto com outros filmes nacionais e queers, reelaborar, quase a fim de exigir, novas posturas. O “agroboy” não é necessariamente bolsonarista e violento, por exemplo. A sabedoria sabe que é necessário recontar histórias como que para reestruturar nossos átomos. Porque também de histórias são (de) formados os mundos.

Na era que marca o primeiro show da primeira drag queen, a Pabllo Vittar, a se apresentar no Coachella, temos a explosão da consciência sobre diversas questões íntimas, privadas e seus atravessamentos no âmbito público e coletivo. E junto com toda luz, a raiva, filha do medo e mãe da covardia. O fato é que Nany People, Rogéria e vanguarda adentraram casas. No entanto, agora Pablo Vittar, Gloria Groove, Linna e semelhantes mesmo que no anonimato milagroso, adentram consciências. É no peso de algumas delas que o filme em questão mora.

É por sabermos o que nos é dito como óbvio que esperamos o tempo todo aquilo que Madalena guarda e faz-nos aguardar. Atrás das câmeras, uma equipe ampla. Na frente delas, uma narrativa que nos faz duvidar da força da hegemonia que, através dos recursos desse roteiro, nos trai. O roteiro nos promete o mistério e, com ele, sua dissolução. Embora o filme não nos deixe outra opção se não a de questionar as tensões provocadas pelo filme que nos torna prisioneiros do seu final, seu apogeu. Embora eu creia enxergar a importância de certas decisões na linguagem para corroborar com as escolhas das narrativas, tenho ressalvas ao uso e abuso de recursos da direção, edição e montagem que sabem que a tal promessa não vingará. E não, não se trata tão somente de reproduzir a tensão da vida porque ela não se dá assim e também se dá de formas que poderiam ser muito bem e melhor exploradas do que a escolhida. O que prevalece é a sensação de que, não só pela violência cotidiana, todas as amigas de Magalena sabem exatamente o que houve. Mas nada se dá para nós, o público. Também nada se dá de forma evidente e inteligente para elas. É compreensível em seus níveis. Mas não é palpável na forma que deve ser: no filme e sua audiovisual mensagem. Por fim, somos envoltos e envoltas num olho d’água enquanto penetramos um mundo para no final sermos dele expulsos. É algo que vai além da inserção, pertencimento ou compreensão. É sim algo presente nas escolhas da construção do roteiro, direção, montagem e edição.

Madalena sem sombra de dúvidas é um filme incomum. A sua marca fruto de um talento ainda parece pouco lapidada (e não sei se tão bem ou logo será) pelo público e mãos que assim o fizeram. Madalena explora o óbvio sempre com algum intermédio, pelas entrelinhas mesmo nos mais amplos e confusos cursos. O filme não nos diz o óbvio, embora brinque de colocá-lo em evidência. E essa característica pode ser tão fascinante quanto frustrante porque, mesmo que o filme possa dialogar com todos os públicos, o seu desfecho revela uma intenção e forma limitante. Até pouco antes do final do filme, o público é movido pela sede inventada pela promessa que o filme faz e, pasmem, será frustrada. É muito importante perceber a relação intrínseca entre forma e conteúdo. É a partir dos recursos geradores de suspense que o filme gera essa promessa que o faz palpável e palatável a um possível grande público. São recursos sim já há muito explorados. Contudo, Madalena falha ao buscar construir uma caricatura de “Cinema de Arte” que, sem querer, aponta o que há de pior: algum elitismo fruto da suspensão. Essa suspensão, esse silêncio, bem como o dado que aparece ao final do filme, parecem tentar resolver o que o filme, no roteiro, não conseguiu. A saída, no seu final, parece tanto a consolidação de uma incompatibilidade interna quanto uma busca por resolução. O respiro final é a incompatibilidade e o dado é a busca pela resolução. É esse dado que faz o filme fazer sentido mesmo aos olhos atentos e nada cegos.

O público que a estrutura do roteiro cativa através dos seus recursos de tensão, se encontra com o público que o final do filme almeja alcançar e juntos ambos os públicos sofrem de uma imensa frustração. E não digo o que digo em defesa de que “Madalena deveria ser apenas uma coisa ou outra.. Mas sim em defesa da tese de que se deve transitar bem fluidamente, se for essa a intenção. E, infelizmente, não é o que, no filme, acontece. Existem sim muitas áreas interessantes em “Madalena”. O trabalho fruto da nítida e bem feita união entre a Fotografia e o interessantíssimo trabalho de Som, garante a quem assiste o milagre da fé na atuação do talentoso elenco sul-mato-grossense. O filme por inteiro nos leva à imersão, o que é um ponto extremamente positivo. Embora o deságue, seu resultado possa ser, como aqui foi, criticado. Mesmo sendo inegável a qualidade dessa imersão.


Filme: Madalena
Elenco: Natália Mazarim, Rafael de Bona, Pâmella Yulle,  Chloe Milan, Joana Castro
Direção: Madiano Marcheti
Roteiro: Tiago Coelho, Thiago Gallego, Madiano Marcheti, Thiago Ortman e Helena Vieira
Produção: Brasil
Ano: 2021
Gênero: Drama, Suspense
Sinopse: Três pessoas diferentes são envolvidas no misterioso desaparecimento de uma mulher trans no interior do Mato Grosso do Sul.
Classificação: 12 anos
Distribuidor: Vitrine Filmes
Streaming: Netflix
Nota: 7,0

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