CRÍTICA – A PRIMEIRA COMUNHÃO

CRÍTICA – A PRIMEIRA COMUNHÃO

O terror espanhol inicia de forma promissora. Apesar da cena prólogo de uma personagem não relacionada sofrendo os efeitos de uma possessão ser uma convenção recorrente, é um momento de impacto que prepara o terreno para os horrores do filme. A Primeira Comunhão trabalha sobre temas bem construídos e é servido de bons momentos. Mas com tantas repetições e abordagens saturadas como o contexto católico, fantasmas de vestido branco e bonecas amaldiçoadas, inevitavelmente tropeça por clichés e narrativas previsíveis.

A história se passa na Espanha dos anos 1980, quando uma família de funcionários de um abatedouro se muda para um cidade pequena com uma estrita comunidade católica. Todos se sentem de alguma forma deslocados neste período de adaptação. Os pais, vivem preocupados com seus empregos, a manutenção das aparências e o controle de suas filhas. A filha mais nova, que passa seus dias isolada em casa após a cerimônia de primeira comunhão e a filha mais velha, Sara, que tenta conciliar sua vida familiar com a juventude e a vontade de se rebelar. Quando a jovem protagonista e sua amiga do colégio vão para uma festa e perdem a carona de volta, precisam voltar com dois rapazes suspeitos que a fazem parar no meio de uma floresta. Após avistar o fantasma de uma garota perdida em vestido de comunhão, Sara encontra uma boneca velha e a leva para casa na esperança de entregar para a menina. A partir desse encontro, os quatro jovens se tornam marcados pela maldição.

O que começa como um gesto de boa vontade da personagem principal, se torna sua sina. A chegada da boneca na casa dá início a uma série de sintomas e assombrações como os vistos na personagem do prólogo, e, consequentemente, se inicia também para os outros três jovens que encostaram no brinquedo. O fator mais identificável são as manchas na pele, seguidos de palidez, vômitos e ilusões desencadeadas pela aparição do fantasma. Porém, assim que esses elementos são percebidos, são vistos como consequências do comportamento impulsivo dos jovens e associados ao uso de drogas. Dessa forma, a protagonista não consegue encontrar o suporte necessário em seus pais e nem na comunidade, que, encabeçada pelo padre local, ofuscam seus segredos e impõem seu julgamento moral sobre os desviantes. Isso faz com que as meninas precisem resolver seus problemas por conta própria e cria uma interessante discussão sobre o moralismo. Longe de amparar a família, ele a segrega.

O fantasma da menina da comunhão é um dos segredos da cidade. Mas ocupa um espaço singular entre as forças em embate na trama. Ao mesmo tempo que é uma ameaça constante que assola apenas o núcleo afetado dos jovens, é um paralelo direto com o que eles vivem naquela comunidade. Na origem da assombração, está a mesma história de perseguição e isolamento do que é condenado pelos valores locais. Entretanto, não se trata de nenhuma força benigna que se volte contra seus algozes, e sim, mera consequência do trauma imposto no passado, uma maldição que se volta contra os próprios excluídos, perpetuando o ciclo traumático. Por isso as investigações e tentativas de solucionar o problema pelo núcleo central, por mais bem intencionadas, não são suficientes para parar esse mal antigo. Por mais coerente que isso seja, afinal nem tudo se resolve com um abraço, gera uma certa ausência de retribuição em uma narrativa que estabelece uma suposta moral que é corrupta, contra genuínos atos de boa fé, que não geram solução alguma. Mesmo que o filme crie protagonistas simpáticos e claros antagonistas, ele parece se preocupar mais em criar um monstro convincente e chegar a conclusões sombrias que contrariam as emoções geradas no espectador. O que atinge seu ápice em um final anticlimático e ingrato.

O cinema espanhol nos últimos tempos tem pesado bem a mão nas produções de terror, mas nem todos podem ser REC (2007), mesmo com uma de suas atrizes no elenco. A Primeira Comunhão se esforça em criar uma boa história de possessão com desdobramentos interessantes, mas permanece em uma repetição de signos e clichês do subgênero, apenas misturando com elementos igualmente saturados de bonecos do mal e fantasmas de origem católica. A narrativa, por mais que entregue algum desenvolvimento das relações entre as personagens, é frequentemente previsível, apresentando indicações nada sutis do rumo da história desde o começo através de tropos conhecidos. Quando não é previsível, é simplesmente inconclusivo, tentando jogar para o alto o bom senso em um ato final arrogante e desagradável.

O terror apresentado no filme oscila entre o verdadeiramente impactante e o abuso da falta de sutileza. Não há problema nenhum quando um filme não se propõe a ser sútil, e esse é o caso aqui, afinal, não se propõe a ser nada além do que é, mas o exagero muitas vezes pode atenuar o impacto de certas cenas. O ritmo das assombrações aqui é bastante acelerado, afinal elas começam logo cedo na trama. Isso é positivo até certo ponto, quando começa a se tornar saturado. É válido destacar, porém, a caracterização da ameaça e aspectos gerais da direção de arte. O fantasma da menina da comunhão aparece muitas vezes, mas sua maquiagem desfigurada com próteses e efeitos práticos fazem por merecer. Poucos filmes de terror atualmente demonstram esse tipo de preocupação, ao invés de simplesmente recorrer ao CGI. Até certo ponto se assemelha aos monstros de Guillermo del Toro, assim como alguns cenários mais sombrios e fantásticos da obra que são iluminados por uma monocromática e sombria penumbra azulada. É interessante calcular o impacto do diretor no cinema de horror da Espanha.

Por fim, o filme busca uma originalidade com a sua premissa que se porta como polêmica ao se centrar em uma tradição católica, mas acaba sendo uma grande reprodução de outras obras do gênero. Caberia falar sobre a semelhança da origem da menina fantasma e a enigmática Sadako de Ring: O Chamado (Ringu,1998). Ambas histórias sombrias ao redor da morte misteriosa de uma menina que é centro das investigações da trama e retorna como uma assombração vestida de branco. Especialmente pela simbologia do poço, cenário de sua morte traumática e para onde o monstro procura arrastar suas vítimas. Caso toda essa mistura de identificações fosse utilizada como influência em uma narrativa sólida, poderia funcionar, mas como não é, sobra apenas uma tentativa infrutífera.


Filme: La niña de la comunión (A Primeira Comunhão)
Elenco: Carla Campra, Aina Quiñones, Marc Soler, Carlos Oviedo, Maria Molins, Anna Alarcón, Victor Solé, Manel Barceló
Direção: Victor Garcia
Roteiro: Guillem Clua, Victor Garcia, Alberto Marini
Produção: Espanha
Ano: 2022
Gênero: Terror
Sinopse: Sara tenta se encaixar com os outros adolescentes na pequena cidade na província de Tarrgona. Eles saem uma noite para uma boate, a caminho de casa se deparam com uma menina segurando uma boneca, vestida para sua primeira comunhão.
Classificação: 16 anos
Distribuidor: Paris Filmes
Streaming: Indisponível
Nota: 5,5

*Estreia dia 30 de março de 2023 nos cinemas*

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