27° CINE PE – AGRESTE

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No árido cenário do sertão brasileiro, Sérgio Roizenblit nos presenteia com “Agreste”, uma obra cinematográfica que transcende o simples ato de contar uma história e se torna um profundo comentário político e social sobre a realidade do Brasil contemporâneo. Desenrolando-se no vasto serão nordestino – com uma fotografia que lembra bastante ‘Vidas Secas’, de Nelson Pereira dos Santos e fotografado por Luiz Carlos Barreto, “Agreste” é muito mais do que um filme sobre o sofrimento nordestino; é um espelho dolorosamente preciso das tensões políticas e sociais vividas pelo Brasil nos últimos anos.

Desde os primeiros momentos, somos mergulhados em um ambiente de dificuldades palpáveis, onde a vida é um fardo carregado sob o olhar vigilante da fé. Sinetas ecoam, e uma simples inscrição na parede – “Só Deus e eu sabem o peso que carrego” – nos diz tudo o que precisamos saber sobre o peso esmagador da vida nesse vilarejo remoto. Maria, uma jovem moradora de um vilarejo e Etevaldo, um forasteiro misterioso, decidem fugir daquele ambiente de opressão no qual vivem. Andando pelo sertão árido e seco, os dois encontram Valda, uma mulher que vive sozinha numa vila remota e oferece abrigo e comida à ambos. Agora, ambos terão que viver escondidos com medo de serem encontrados pela família de Maria, prometida em casamento a um senhor do vilarejo.

Com uma cinematografia magistral, Humberto Bassanello captura a aridez da região com uma fotografia dura com um branco estourado – uma espécie de luz do sertão -, de maneira intensa e, paradoxalmente, bela. Uma espécie de beleza áspera e ao mesmo tempo evocativa, que ajuda a contar a história de forma visual. Ela se torna uma parte integral da narrativa, ampliando a experiência sensorial do espectador e reforçando os temas do filme relacionados à dureza da vida no sertão e à busca pela liberdade em um ambiente repressivo. De modo semelhante a trilha sonora desempenha um papel crucial na moldagem da atmosfera e da experiência do espectador. A fusão de elementos sonoros diegéticos, como o tintinar de sinetas e os sons das galinhas, com uma trilha sonora não diegética cria uma textura sonora que imerge o público na história. Essa mistura engenhosa entre os sons orgânicos do ambiente e a composição musical deliberada é a essência da tensão que permeia todo o filme.

Tendo como cerne do filme a tradição religiosa, narrativa nos conduz a uma comunidade profundamente enraizada em uma fé rígida e restritiva, cujo domínio é manifestado de maneira inquietante. Este controle se manifesta de forma chocante quando a protagonista, Maria, é brutalmente castigada por participar de uma dança de rua ao lado de um comediante, um número que desafia as convenções locais. A igreja, símbolo supremo dessa fé, fecha suas portas durante uma manifestação artística, sublinhando o controle absoluto que exerce sobre a vida das pessoas. Em uma outra cena particularmente marcante, quando Maria descreve Etevaldo como um “homem bom”, Sérgio Roizenblit cria uma contraluz que banha a cabeça de Etevaldo, ecoando a aura dos santos católicos, como se este, em certo grau, representasse os santos. Paralelamente, Maria, grávida de maneira misteriosa, emerge como uma figura simbólica, ecoando a Virgem Maria na tradição religiosa, um paralelo que amplifica o simbolismo do filme.

A perseguição e a opressão implacáveis enfrentadas pelo casal ao longo da trama servem como uma metáfora perspicaz para evidenciar a hipocrisia presente em muitos cenários religiosos, uma realidade que, lamentavelmente, encontra eco no Brasil contemporâneo. A fé, um pilar espiritual destinado a unir e inspirar, é distorcida por aqueles que a utilizam como instrumento de ódio e intolerância. Maria e Etevaldo (santo) são perseguidos por seus prórprios “devotos”.

Criando personagens cativantes, o elenco de “Agreste” faz é um outro elemento que potencializa a experiência. Maria, a figura central, irradia uma alegria contagiante, destacando-se como um raio de sol em meio à aspereza do sertão. Badu Morais, com uma atuação magnífica, traz Maria à vida com uma inocência cativante e uma vivacidade que contrasta vividamente com o ambiente árido do sertão. Etevaldo, por outro lado, é enigmático e reservado, e Aury Porto demonstra maestria ao transmitir o estado de espírito do personagem com uma economia de palavras notável. Finalmente, Valda, interpretada por Luci Pereira, é uma personagem complexa, personificando a dualidade da tradição religiosa. Luci é absolutamente formidável, equilibrando uma doçura intrigante com a sugestão de perigo latente em suas palavras. Destaque também para a notável performance de Roberto Rezende, que, apesar do seu limitado tempo em cena, imprime uma atuação exuberante. Sua presença de tela, seu olhar de julgamento ao confrontar Etevaldo, confere ao personagem uma aura de mistério, enquanto contribui para criar uma atmosfera de opressão naquele ambiente.

“Agreste” é uma obra cinematográfica que não apenas nos transporta para o coração do sertão brasileiro, mas também nos força a encarar os demônios da tradição religiosa, da opressão e da busca desesperada pela liberdade em um Brasil contemporâneo polarizado e politicamente conturbado. É um filme que nos confronta com a verdade inconveniente de que a religião, muitas vezes usada como fonte de consolo, pode também se tornar uma arma de opressão. Roizenblit nos brinda com uma narrativa visual poderosa que não apenas reflete a realidade, mas também a ilumina com uma luz crua e inclemente.


Filme: Agreste
Elenco: Aury Porto, Badu Morais, Jaedson Bahia, Roberto Rezende, Luci Pereira e Mohana Uchôa.
Direção: Sergio Roizenblit, Ricardo Mordoch
Roteiro: Newton Moreno e Marcus Aurelius Pimenta
Produção: Brasil
Ano: 2023
Gênero: Drama
Sinopse: Agreste é uma história de amor no Sertão brasileiro. Etevaldo é um trabalhador rural solitário e reservado, recém-chegado ao vilarejo. Encontra Maria, jovem de espírito livre, porém prometida em casamento a um senhor da vizinhança. Ambos se apaixonam e fogem. São acolhidos por Valda, uma senhora profundamente religiosa, que vê Maria como uma filha. Quando um suposto sequestro passa a ser investigado na região, Etevaldo teme que seu passado seja revelado.
Classificação: sem informação
Distribuidor: Pandora Filmes
Streaming: Indisponível
Nota: 9,0

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