CRÍTICA – CAFÉ COM CANELA

CRÍTICA – CAFÉ COM CANELA

Café com Canela, da dupla diretora Ary Rosa e Glenda Nicácio, nos leva à vida de Violeta (Aline Brune), vendedora de coxinhas no interior da Bahia. A mulher, que vive com seu marido Marcos (Aldri Anunciação) e seus dois filhos, tem uma surpresa ao bater na porta de Margarida (Valdineia Soriano), sua antiga professora. Margarida, por problemas pessoais, vive isolada da sociedade. É, então, que Violeta decide ajudar Margarida, como uma forma de devolver tudo que a professora fez por ela durante sua juventude.

A crônica no cinema nacional

Café com Canela (NICÁCIO; ROSA, 2017) retoma uma tradição muito presente no cinema nacional, principalmente em um período anterior ao Cinema da Retomada: uma estrutura de crônica, um dia a dia quase episódico dos personagens e da cidade. A saber, sem entrar em muitos detalhes, o Cinema da Retomada pode ser visto em um recorte temporal dos anos 90 ao início dos anos 2000. Ou seja, Café com Canela (NICÁCIO; ROSA, 2017) evoca um cinema brasileiro pré anos 90.

Entretanto, diverge na maneira como implementa essa crônica. Uma característica muito popular neste recorte nacional, era a integração da rotina dos personagens com o caos do seu mundo, tal qual Sganzerla fazia (O Bandido da Luz Vermelha, 1968; Copacabana Mon Amour, 1970). Em outras palavras, o mundo de Sganzerla raramente era um que remetia ao nosso. Apesar de não conter elementos fantasiosos, era quase sempre um universo movido ao acaso. Caos, destruição, sujeira. 

O naturalismo de Café com Canela

Em contrapartida, Café com Canela (NICÁCIO; ROSA, 2017) assume um mundo mais naturalista. Isto é, muito mais como o nosso. E é justamente aí que encontra sua maior força. Café com Canela (NICÁCIO; ROSA, 2017) cresce quando apresenta a sensibilidade com a qual lida com esse cotidiano natural. Dessa forma, o filme toca o espectador principalmente pelas relações entre seus personagens e pelos acontecimentos daquele universo; muitas vezes identificáveis. 

Nesse sentido, é um filme sensível. Assim sendo, se revela como uma obra que emociona pelas minúcias do marasmo daquele cotidiano. Pela maneira como o luto e a sobrevivência movem aquelas pessoas. Desse modo, acaba conservando uma progressão dramática mais clássica, ao mesmo tempo que estrutura-a diferente.

Experimentalismo formal

Ainda que tenha aspectos surrealistas, tais momentos se dão muito mais em uma dimensão inconsciente, fora da realidade dos personagens. Ou seja, o surreal não reside no mundo, mas se mostra como um artifício visual para intensificar os sentimentos das pessoas representadas ali. E, desse modo, essas questões não naturais se encaixam em uma experimentação que os diretores tentam empregar.

Sob o mesmo ponto de vista, Nicácio e Rosa utilizam diversos experimentalismos formais na obra; que às vezes funcionam, às vezes não. Como, por exemplo, uma cena em que uma personagem embarca em um monólogo sobre o cinema (com direito à quebra da quarta parede) que soa meio pedante. Ou, até mesmo, uma constante mudança de proporção de tela (existe um momento que rolam três cenas seguidas, com três proporções diferentes), que não se justifica tanto.

Caos na forma cinematográfica

Em contrapartida, tais artifícios poderiam justificar a si mesmos se a mise-en-scène — termo francês utilizado para denominar a construção cenográfica de um filme — não fosse tão naturalista. Se, por exemplo,  Café com Canela (NICÁCIO; ROSA, 2017) se encontrasse em um mundo mais caótico — como o de Sganzerla citado anteriormente, ou, até mesmo, como Godard (Acossado, 1960; Alphaville, 1965). 

Dessa maneira, o acaso e a aleatoriedade daquela encenação ofereceria uma motivação para uma ludicidade maior com a forma. Entretanto, ao optar por esse caminho mais naturalista e dramático, estes aspectos acabam soando destoantes. Dessa forma, não se encaixam tão bem na proposta e soam como uma brincadeira vazia, alheia ao próprio filme. Por fim, nestes momentos resta um formalismo distante da dramatização estabelecida.

Todavia, em alguns momentos essa experimentação se adequa bem. Como as vezes em que Café com Canela (NICÁCIO; ROSA, 2017) brinca com a temporalidade para reforçar as emoções. Por exemplo, em algumas cenas onde mescla passado e presente, com a imagem representando o agora, e o som nos fazendo ouvir o que já foi. É um experimento poderoso, que toca o espectador ao ilustrar bem as sensações e as vidas dos personagens. 

A montagem de Eisenstein em Café com Canela

Igualmente, um outro acerto da obra é a maneira como trabalha sua montagem. Serguei Eisenstein (cineasta e teórico soviético) já argumentava a favor da montagem como artifício para o despertar emocional do espectador. Em outras palavras, para o cineasta, a maneira como os fragmentos do filme se intercalam podem fazer surgir sentidos diferentes em quem assiste. Assim, parece que Nicácio e Rosa compreendem e empregam bem este ponto de vista.

Dessa forma, Café com Canela (NICÁCIO; ROSA, 2017) consegue trabalhar bem sua montagem para evocar exatamente o que deseja no espectador. Como, por exemplo, nos diversos <i>jump cuts</i> — técnica de corte brusco, que causa um efeito de salto no tempo. O seu uso desperta, sobretudo, a sensação do marasmo da rotina daquelas vidas. 

Sob o mesmo ponto de vista, a alternação rápida de cenas contrastantes ou simbólicas. Para ilustrar, temos uma cena onde é mostrado um homem no mercado e, conforme ele compra seus itens, os planos são alternados com imagens dos mesmos produtos estragados na geladeira de Margarida. 

Dessa forma, não é necessário nenhum reforço sobre a mensagem. O filme se esvai da necessidade de expor mais diretamente o que quer passar, seja com diálogos ou outras imagens. Assim sendo, apenas a montagem desses fragmentos é o suficiente para evidenciar o discurso que quer entregar. Aqueles planos rápidos dos alimentos estragados dizem muito sobre a vida e a condição mental de Margarida, ao mesmo tempo que não dizem nada. 

Parque de diversões experimental

Em conclusão, Café com Canela (NICÁCIO; ROSA, 2017) é uma bela obra sobre relações humanas e, principalmente, sobre o vazio deixado pela falta delas. Exagera em determinados momentos com suas experimentações na forma. Desse modo, talvez pudesse se aproveitar mais de um escopo mais centrado. Isto é, manter esse aspecto lúdico da técnica sem deixar ela escapar da proposta da obra. Entretanto, não deixa de ser um ótimo trabalho de estréia da dupla. E, tão importante quanto, não esquece de ressaltar o potencial do nosso cinema.


 Pôster do filme "Café com Canela", de Ary Rosa e Glenda Nicácio. Filme: Café com Canela
Elenco: Aline Brune, Valdineia Soriano, Babu Santana, Aldri Anunciação, Arlete Dias, Antônio Fábio
Direção: Ary Rosa, Glenda Nicácio
Roteiro: Ary Rosa
Produção: Brasil
Ano: 2017
Gênero: Drama
Sinopse: Margarida vive uma vida isolada da sociedade. Tudo muda quando Violeta, uma antiga aluna sua, bate à sua porta.
Classificação: 14 anos
Distribuidor: Arco Audiovisual
Streaming: Amazon Prime Vídeo, Itaú Cultural Play, Plex
Nota: 7,0

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